sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Ainda Aberta

Por mais dor que carregasse, foi um gesto enraizado no amor. Um convite que fiz do melhor jeito que encontrei. Um chamado para termos uma vida diferente da vivida e um pouco sofrida dos nossos pais. Não era para ser diferente por capricho, mas por uma vontade de não se acostumar com os vazios. Era para te mostrar que dava para ser melhor, que ainda tinha potencial intacto e de sobra para ser usado.
Por mais agressivo que possa ter sido, foi o jeito que encontrei de te dizer que os seus braços eram únicos e seria desperdiço não usá-los em novas direções. Gritei para isso. Gritei para ver se conseguia eliminar suas frustrações, elas deixavam os sonhos minados de palavras negativas e impediam qualquer ideia que quebrasse o esquema “comer para trabalhar e trabalhar para comer.” Eu gritei para acordar seus ideais.
Por mais prepotente que os meus planos pareçam, eu chamei você para me ajudar abrir o embrulho do mundo e sarar com as novidades as feridas ainda abertas. Eu entreguei o mapa, molhado pelo suor das minhas mãos, mas você recusou. Desesperei-me. Apontei com os dedos trêmulos as maravilhas do horizonte, mas você fincou os pés no chão.
Por mais egoísta que eu possa parecer, eu parei para perguntar qual era a vantagem de estar onde estava, mas você não soube me dizer. Então, com o coração aos pulos eu tentei te dizer que você podia ser muito mais do que pensava ser, que era possível crescer, deixar de se diminuir aos problemas passados e se transformar na própria vida pulsante, em vez de apenas um personagem dela. Era possível correr. Correr para fora dos muros dos quases e dos talvez.
Eu tentei explicar...mas você não pode entender. Então eu parti, mas deixei o convite aos seus pés.
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

No meu armário

Arrumei meu guarda-roupa nesse final de semana. Não que fizesse muito tempo desde a última organização, mas a bagunça parecia enraizada. Sempre que abria uma das portas um potinho de alguma coisa caía em meu pé. O dedo latejava e eu prometia: “amanhã eu arrumo”. O mesmo ritual quase todos os dias.
Acabei encarando a tarefa no sábado, logo depois de acordar. Tomei alguns goles de café com leite e deixei a mesa, prometendo uma conversa mais tarde com a minha mãe. Meu quarto estava iluminado pelo sol primaveril.
Joguei todas as roupas em cima do lençol verde florido e comecei. Comecei por achar blusas que não me serviam mais, mas que a ausência de coragem não tinha me permitido doar.
Eram curtas, apertadas e estagnadas em gostos antigos. Não me cabiam mais, mas eu as conservava, porque um dia me couberam. Era medo de deixar o que um dia foi agradável. Medo de reconhecer os ciclos, o fim.
Era medo de descartar o número. Era mais fácil deixá-las por último, do que não deixa-las ali. Era difícil não pensar nos momentos em que me aqueceram ou me livraram do calor. Era apego do mais real e do mais vazio.
Eram só roupas. Ou não? Eram lembranças de pessoas que já não estavam mais, o fio da lembrança se segurava nas linhas, na cor. Mas era lembrança? O vivido tinha ido, tinha vivido do jeito bonito que conseguiu e foi embora. O dono cresceu. Não cabia mais, era hora da despedida.
Em duas levas deixei tudo para doação. Voltei ao meu quarto iluminado pelo sol primaveril e reorganizei o que ainda fazia parte de mim, o que ainda me cobria por inteiro, que não me exigia contorções ou falta de ar.
Antes de fechar as portas, olhei tudo. Vazios estavam espalhados em vários lados. Empurrei a maçaneta e caí na cama satisfeita, melhor os vazios a preencher, do que sobras enganosas. Melhor!

Por Natália Oliveira

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Nu inteIrior

É me carregando e me empurrando às vezes...
Tenho me pesado ultimamente. Não as gorduras, mas as bagunças internas que tenho para arrumar. Faz muito tempo que não mexo nelas, o excesso de coisas externas me ausentaram desse quarto de existência, aliás já deve beirar um sexto, sétimo. Não que eu tenha deixado de visitá-lo, eu até chegava a adentrá-lo, mas no cansaço jogava tudo para o lado e me aconchegava no descanso da beirada.
Esses dias, porém, me deram um ultimato: ou aparecia ou a leveza e o amadurecimento iriam embora. Sem saída, parei na frente do monte que me impedia de continuar sem pesos e aos poucos avancei. Abri caixas e enxerguei falhas passadas em cima de antigos palavrões. Portas quase abertas, esforços incompletos, limites não ultrapassados, quases. Abri as pastas e derrubei todo material no chão. Incertezas, dúvidas, dívidas, medos caíram aos meus pés.
Encontrei palavras desfeitas, contratos, desculpas. Olhei cada detalhe de tudo que pudia, frente e verso, cima, baixo. Achei alguns problemas resolvidos, mas remoídos na falta de outros assuntos. Enchi as mãos e rasguei todos. Os picados sumiram, deixando um gosto de riso e um degrau. O amadurecimento prometido acontecia. Continuei na ordem da desordem cada vez mais leve.
De repetente tropecei em uma vitória intacta. Soprei o pó que a cobria e lembrei do dia que a conquistei. Sempre a quis, mas não comemorei porque estava ocupada demais pensando nas coisas que o meu empenho máximo não tinha conseguido fazer. Dessa vez a abracei, pulei com ela e ri alto. Dancei sozinha. Ou melhor, com ela. Na coreografia inventada, gritamos alegrias, mandando embora todos os dedos apontados, constrangidos eles foram e não voltaram mais.
As latas de lixo já estavam cheias e a desordem bem menor, quando me deparei com sacos pretos. Avancei sobre eles e vi que estavam tomados por coisas que fizeram meu coração doer. Por impulso, arranquei tudo lá de dentro e com raiva pisoteei, não quebrou. Trouxe para perto do peito e tentei partir em vários pedaços, mas quanto mais colocava força, mais resistente e áspero ficava. Minhas mãos doíam e o sangue pulsava. Aquilo tudo não me permitia descarte. Nem sinal de gosto de riso e nem degrau.
Lágrimas rolaram. Sentei cansada, fechei os olhos, respirei fundo. No silêncio profundo os degraus me convidaran, obedeci. De cima percebi que os sacos eram menores que pareciam e o inquebrável não passava de proteção. Era preciso valer a pena ter sentido a dor, se a eliminasse antes do fim, se estilhaçaria e ficaria incolável, ganharia, então, o nome de fracasso . Não podia interromper o curso dos desesperos, das lacunas e dos excessos somados, eles eram necessários, precisavam ser vividos intensamente até perderem a cor.
Então o descarte chegaria junto com o gosto de riso e o novo degrau no momento certo. Com eles eu alargaria os lábios e cresceria mais um pouco, as coisas mudariam de tamanho, de temor, amadureceria. Enquanto isso não acontecia, era preciso respeito ao curso da vida.
É me entendendo e amando outras...
Por Natália Oliveira

sábado, 27 de novembro de 2010

Venha

Venha, apesar da névoa instalada nesse dia de sol. Sente-se e conte-me coisas boas. Algo que tenha lhe feito feliz hoje, ontem ou semana passada. Qualquer coisa que puxou seu sorriso de um lado a outro e deixou o mundo mais colorido. Fale, eu ouvirei. Esqueça do sério demais, do formal. Ria, eu vou com você, afastando toda gente que diz que rir alto é “feio demais”. Não se acanhe! Não há nada de brilho aqui, além do sol. Venha assim mesmo. Não levo nada além do pano leve do vestido. Vestida de mim da cabeça aos pés. Chegue e sinta o seu ser também, ele pede para tirar o aperto. O nosso estreito. Sente-se. Fique.

Por Natália Oliveira

domingo, 21 de novembro de 2010

Um Batom

O relógio marcava mais de quatro horas quando cheguei. Ele? Já estava lá. Vestia calça jeans azul, camisa, blusa de lã e sapato social. A pele bronzeada cobria toda a altura mediana e os cabelos cacheados em preto estavam “no lugar”. Com as mãos grossas segurava uma sacola.
Os ônibus passavam rápido pela avenida, mas quando paravam, o homem caminhava até eles e tocava com a ponta dos dedos a pintura branca do carro. O mesmo ritual dezenas de vezes, até que o movimento cessou. Ele então sentou ao meu lado, jogou o tronco para frente e um braço para trás. Do gramado pegou um pedaço de plástico preto, recentemente deixado acredito. Mexeu em um dos lados, fazendo com que uma ponta rosa escura aparecesse. Um batom.
Olhou fixamente para o objeto que segurava e em seguida encostou várias vezes a maquiagem nos lábios que, por sua vez, ficaram cheios de bolinhas coloridas. Satisfeito, ele, então, lambuzou os dedos e passou o rosa pelos cabelos, penteando os fios com as mãos. O contraste da cor feminina com os traços extremamente masculinos fazia graça, mas algo de ternura transbordava dele, eu não ri.
Meu ônibus chegou e, antes de partir, pude ver ele inclinando e chacoalhando o batom para baixo, em seguida levou as mãos ao pescoço e, com mais rosa, enfiou-as embaixo do braço...
"Loucura e inocência são tão parecidas, que a diferença, embora essencial, mal se percebe." (William Cowper)
Ao senhor.
Por Natália Oliveira

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sem Saber

Entrou pelas janelas da cozinha, provavelmente vindo de outra, e seguiu ao meu encontro no escritório. Encontrou-me despenteada, de pijama e pantufa, digitando comentários em blogs.
Tocava “Canção Para Você Viver Mais”, do Pato Fu. Na tela do computador, uma janelinha do msn piscava. Era um amigo. Visivelmente um amigo. Tudo muito claro para mim, mas não para quem chegasse. E ele chegou. E chegou sem avisar, escondido. Entrou, se aproximou e simplesmente me invadiu, sem pedir autorização ou licença.
Veio com tudo. No impacto perdi a consciência do que fazia, larguei o teclado, soltei a ideia do pensamento e em voz alta me perguntei: “de onde vem esse cheiro de bife acebolado?”. Era tão vivo que pude imaginar o gosto da carne. Ele me entorpecia e agitava minha cabeça, me convidava para sentar à mesa. Se fosse, o que encontraria? Toalha, panelas e litros de refrigerante? Ou alguns pratos rasos já cheios pela comida servida na cozinha? Orariam antes de comer? Ou não? Quantas pessoas estariam? Cinco, seis, sete? Ou menos? Ou mais? Do que conversariam?
Não sei. Ele foi embora e eu fiquei sem saber. Não sei.
Por Natália Oliveira

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Vai continuar sendo assim, não há sentido em outra maneira. Não te obrigo, não te prendo, não te forço. Está livre para onde quiser ir. Se voltar, é porque ainda me guarda, se perder o reencontro, é porque não há mais eu e você. Não há contratos, há apenas o trato de cuidar da leveza e da confiaça que une eu e você.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Quando Matei Aula

Sentadas em uma das mesas da pastelaria, localizada dentro do supermercado, três meninas jogavam “Stop” Dividiam o espaço com mochilas e cadernos, por isso e pelo horário desconfio que matavam aula. Vê-las me fez lembrar da primeira e única vez que realizei a tão sonhada aventura de escapar da matemática. A professora era uma mulher rígida, de corpo roliço e cabelos grisalhos. Usava óculos redondo e um avental “salmão”. Os alunos tinham medo dela, em sua presença reinava um silêncio profundo e atípico para uma sala de 4ª série.
Sofria. Não levava o menor jeito com números e, por sacanagem ou falta de sorte, sempre era escolhida para fazer os exercícios na lousa. Sem ter a menor ideia por onde começar, inventava uma lógica, sempre sem pé nem cabeça, e com as mãos suadas de nervoso rabiscava no quadro. “Claro que estava errado”, ela se alterava. Eu disfarçava como podia o constrangimento, enquanto as maçãs do rosto inflamavam. Ao final de cada aula, ela sempre deixava lição de casa. Com as fórmulas, sentava no chão do meu quarto, apoiava o caderno na cama e nos embalos de colheradas de Nescau tentava resolver os problemas, sempre sem sucesso.
Naquele dia, sabia que não tinha feito os cálculos e que provavelmente seria chamada para resolvê-los. Aproveitei a troca de professores, peguei minha mochila e corri pelo corredor afora. Tinha cinco minutos para resolver o que faria com a minha liberdade. Desci os vários lances de escada e segui para o portão que separava o pátio, da rua. Trancado! Analisei o muro. Não era alto, mas tinha cerca e se eu ficasse enganchada lá? E se chamassem a professora de matemática para me tirar? Quantos exercícios eu teria que fazer para...despertei. Precisava me esconder, antes que alguém me encontrasse!!!
Corri até o banheiro próximo. Entrei rápido, me enfiei em uma das cabines, tranquei a porta, fiquei em pé no vaso e, logo em seguida, me encolhi inteira. Minhas costas encharcavam a camiseta. Cabulava. No auge dos meus 10 anos, eu finalmente cabulava. Era simplesmente genial, tinha escapado de todo mundo e agora cabulava! Independência ou morte! Revolução! Eu era muito evoluída, pensava.
Cinco minutos depois na mesma posição, deixei o banheiro com câimbras, lamentei a ideia e pedi para entrar na aula.
Por Natália Oliveira

domingo, 31 de outubro de 2010

Até firmar os passos

Vai ser assim até firmar os passos de novo. Acostumada com o solo seguro, é difícil imaginar como será o imprevisível. O que se sabe é que o caminho já não é o mesmo, os passos não ficarão marcados como antes e isso a faz pensar que não é capaz de andar. Sente um arrepio na espinha, trava o mapa, gruda os pés na linha de partida. Um novo chão a espera, longo, vivo, uniforme. Ela o recusa. Chuta. Suja os sapatos. A terra levanta grãos em forma de poeira e depois assenta no mesmo lugar.
Pensa, então, voltar para o caminho já percorrido, onde o andar lhe é familiar, mas ao mesmo tempo, sabe que não é feita de retrocessos. No fundo, gosta do embate, porque são eles que a tiram dela mesma. Cospe o pensamento, nega-se. Observa os canteiros, olha bem os refúgios e alimenta a certeza de que se não der, pode correr escondida, camuflada para o topo de alguma árvore. Mas mesmo vendo que os galhos a suportariam, sabe que não é na fuga do embate que elimina os medos. É vivendo-os. Briga consigo por pensar tantas contradições, manda e obedece o pedido de calar a boca.
E cala. Cala os pensamentos, mas o corpo continua a gritar. Suas pernas tremem, o coração empurra o peito pra frente e para trás, gotas de suor escorrem da testa e molham a camiseta. Sente a saliva sumir da boca. Náuseas lhe jogam o estomago para um lado e para o outro, a cabeça parece girar. Tentando equilíbrio lança um olhar aos canteiros, vê bem os refúgios, sabe que pode fugir. Mas não foge. Corre! Corre pelo chão incerto, tropeça, afunda os pés no desconhecido, corta os dedos com pequenas pedras que saltam em seu tênis, mas continua a correr. Até que sua força se esvai, permite-se cair então. Seu corpo toca o chão áspero, tudo lhe dói.
Ajeita-se no desconforto como pode, traz as pernas ao encontro dos seios e chora. Lágrimas grossas vão ao encontro de seus lábios, que ficam salgados. As dores lhe parecem as mais agudas que já sentiu. Com ajuda dos braços arruma as pernas e levanta-se, como bonecos de elástico. Finca os pés no chão. Sente medo, muito medo, mas já sabe que não é a mesma. Leva as mãos ao rosto para conter o suor que lhe molha. As árvores já não lhe parecem tão seguras. Equilibra-se, pega suas forças pelos fios, sustenta a vontade nos olhos e corre certa de que se machucará de novo, mas já não é mais a mesma.
Por Natália Oliveira

sábado, 9 de outubro de 2010

A arte de cobrir os pés

As portas abriram e as pessoas desaguaram na rua. Depois de algumas mulheres, ele desceu com dificuldade as escadas. Andava se equilibrando num esforço visível de se manter em pé. Usava um terno azul marinho bem cortado, gravata em listras. As cores realçavam a pele mulata. Os cabelos eram pretos arrumados em gel. Acompanhei todos seus movimentos com um olhar despretensioso.
Imaginei que estivesse com as pernas machucadas pelo tamanho esforço que fazia ao se locomover, mas a suposição perdeu logo o lugar para a certeza de outra cara. Seus pés estavam parcialmente encaixados nos sapatos, usava-os como se fossem tamancos, com os dedos enfiados até o fundo e o calcanhar de fora. Os pés estavam nus.
Assim que desceu do ônibus, tentando não perder os calçados no meio do caminho, seguiu para o gramado próximo, que separava a calçada do estacionamento da loja de construção. Em meio ao verde, um quadrado de concreto um pouco mais alto do nível da grama destacava, ali ele sentou. Os joelhos flexionados apontavam para o céu, enquanto a calça deixava à mostra as canelas finas.
Nas mãos ele segurava um bolo de pano cinza, que logo se desfez em meias de algodão. Ali mesmo, na calçada, ele vestiu o primeiro pé. A ponta do dedão apareceu num furo discreto. Não havia a menor demonstração de ansiedade em seus gestos, mesmo quando percebeu que eu o observava. Sustentei o olhar por alguns segundos e virei o rosto para rua. Ele, então, voltou à arte de cobrir os pés. Sem acelerar a calma, desamassou e calçou a meia que faltava, também furada. Então mergulhou os pés nos sapatos e se pôs em pé.
Poucos minutos depois dei sinal ao segundo ônibus dos três que pegaria naquela manhã. Entrei, passei a catraca e olhei para aquele todo mundo com cara de sono, de trabalho e de trânsito. Sentei. Apesar do sol de primavera, o vento passava pela janela aberta e batia forte. A franja recém cortada dançava em meu rosto. Gostoso. Fechei os olhos e percebi que algo acontecia em mim. Som de riso. Ouvi. A ausência de elegância daquele homem brincava despenteada dentro de mim.
"A arte alimenta-se de ingenuidades, de imaginações infantis que ultrapassam os limites do conhecimento; é ai que se encontra o seu reino. Toda a ciência do mundo não seria capaz de penetrá-lo."(Loinello Venturi)
Ao artista de pés descalços.
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Férias

Queridos da minha vida,
estou em férias!
Logo volto para me encontrar com vocês.
Por Natália Oliveira

Vital

Por mais convicta e ideológica que eu seja, é vital para minha existência um espaço para a dúvida. Preciso – e precisar é além de desejar – deixar um “ou não” caminhar bem do ladinho da certeza absoluta. Dou o meu melhor no que me proponho, mas não me iludo, eu posso renunciar ao meu melhor sonho a qualquer momento por puro prazer de escolher de novo.
Sou capaz de fazer escolhas e defendê-las até a esquina da mudança de ideia, de plano. Por mais decidida e consciente das minhas decisões, não deixo o alimento do meu lado incerto faltar. Ele me ajuda a saber que os ultimatos são perigosos e que devo manter a distância necessária para não me envenenar. Vida é movimento, dizem por ai, e é nele que eu me esbaldo.
Não sufoco as ideias dos meus milhares jeitos e nem repreendo suas vozes, suas existências são tão necessárias quanto o ar. Eles tão vivos em um dos meus lados insistem em abrir a porta do caminho ainda não explorado. Nem sempre sigo suas trilhas, mas a calma inunda só de saber que a qualquer momento posso voltar. E eu volto porque não sou uma, sou muitas e todas querem me trilhar.
Não levo jeito para viver amarguras só por medo de olhar para atrás. Eu vou e volto, subo e desço, giro, me transformo, me encaixo e entro para sair e saio para entrar. Tudo para ver de qual maneira é a minha, é a melhor, é a que vai me agradar. É vital.
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Não é felicidade

Na verdade não. Não dá para dizer que é felicidade genuína, daquelas que a gente tem vontade de gritar e sair para o caminho do abraço, mas é um bem-estar da forma mais literal possível. Um bem-estar de camisola, shorts, cabelos desalinhados, café com leite na xícara e pão com manteiga.
Um bem que nasce da música que toca e que joga meu corpo devagar “prum” lado e pro outro de um jeito suave. Algo como estar bem para dizer coisas sem sentido com um amigo e rir porque o que se fala não tem graça alguma. Tipo de recusar a ver matérias repetidas sobre desgraças repetidas sobre soluções não encontradas.
Apenas sentar de pernas cruzadas e ver as letras pintando o branco da folha e agradecer de peito cheio por um dia ter sido alfabetizada. Coisa de não se importar com o relógio avançado, mesmo sabendo que no outro dia vai ter trabalho. Na verdade não é felicidade genuína, é só um bem estar. Um estar bem. Tudo dosado de agora.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

...

Talvez dê certo. E talvez não.

Pode ser que os planos se concretizem como foram idealizados e pode ser que se transformem em fumaça de frustração.

Entre a dúvida e a certeza tem chão.

Fico então com a paz do meu caminho percorrido aos poucos, aos passos, aos minutos bem curtidos, bem intensos.

Entre a dúvida e a certeza tem chão. Talvez dê certo, talvez não.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Recém

Antes de qualquer coisa, deixe eu contar o cenário da história...
É uma rua não muito extensa. Nela há três pontos, todos finais, marcados por postes finos de ferro com placas, que organizam as filas de passageiros. Um muro branco encardido separa a rua da empresa, construída do outro lado, e também é usado de encosto por quem espera o ônibus para sair. Mesmo cheirando a xixi, há sempre quem se apóie. Há também algumas cabines, mal conservadas, onde ficam os fiscais. Os motoristas sempre aparecem por lá e sempre se atrasam e os passageiros sempre reclamam, mas sempre fica do mesmo jeito.
Enfim. Desci no primeiro ponto, passei pelo vendedor de pipoca, amendoim, batata e balas - ah, porque lá também tem um vendedor – e parei no lugar de sempre, atrás da menina de sempre. A menina. Ela sempre está lá, sempre a primeira da fila. Ela e sua carinha redonda, branca, sem expressão. Ou melhor, até tem expressão, mas é a mesma expressão de um recém-nascido. Se há gente com cara de joelho, ela é um molde perfeito. Têm olhos pequeninos, vivos, pretos e um semblante permanente de choro.
Parei atrás dela e os meus olhos acostumados pousaram em seus cabelos pretos amarrados num rabo de cavalo, elástico azul. Finos e ralos, um pouco rebeldes, mas compridos. Vestia uma calça social escura, posso lembrar porque... bom depois eu digo. Um dia no ônibus sentei atrás dela, o acrílico que separava os bancos da porta refletiam sua testa franzida, era engraçada a recém-nascida. Não engraçada de gozação, mas de gente engraçadinha, mesmo.
Mas voltamos ao hoje. Ela parecia impaciente, como sempre. Sem mexer o corpo, virava o pescoço para trás com as sobrancelhas contrariadas em tentativas inválidas de trazer alguém ali, para dirigir. Permanecia nesta posição por alguns segundos e depois virava para frente, uma perfeita recém-nascida a danada. Eu esperava, até que a calça social dela eu percebi. Um barulho, rápido, picado, estranho para ocasião, mas conhecido. Despertei!
De onde tinha vindo? Quem tinha sido?
Ela se denunciava. Sem graça passava a mão na parte de trás da calça, ligeira e sem mexer o corpo me deu uma olhada. Em silêncio eu respondi “sim, deu para ouvir”. Coisa de recém-nascida solta pum por aí.
Por Natália Oliveira

sábado, 7 de agosto de 2010

Dona Josefa

Dona Josefa Josefa é dona de uma cor de leite com café e de um paladar um tanto especial. Detesta verduras e legumes, come manga só quando tá com vontade de verdade e não pode sentir o cheiro de macarrão, banana e chocolate. Diz que carne vermelha sempre gostou, até a idade bater na porta e levar isto também.
Vendo-a trabalhar na cozinha, ofereci ajuda duas ou três vezes quando sozinha pegou uma vasilha cheia de frango, o suficiente para trinta pessoas ou mais comerem - dá para imaginar a quantidade - disse que não precisava. Não me deixou também ajudá-la a carregar uma mesa, fez sozinha.
Quem lê pensa que tem um tamanhão, mas eu digo que Josefa é um tico de gente. Baixinha de corpo miúdo e sem muitos nutrientes, né? Ela discorda. “A saúde é Deus que me deu”, quem sou eu para discordar. Com 69 anos ela sorri bonito e me diz que é avó de 22, mãe de 7 e na lanterninha 3 bisnetos.
Trabalha duro e oferece em troca de salário seus dotes culinários e ai de quem chegar tarde para comer almoço frio, ela coloca a mão na cintura, franze a testa e dá a bronca merecida. Quando passa, ri e confessa:“eu sou um poço de chatura”.
A ela.
Por Natália Oliveira

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Tempos Fugit

...Por isto, tire o tempo para ouvir suas músicas prediletas, ler seus autores preferidos, estar rodeado das pessoas que você realmente ama. Não temos tempo para tudo, para viver bem é preciso escolher o essencial.

Ps> Arrumando minhas coisas encontrei um cartão de aniversário, reli e gostei especialmente deste trecho que divido acima com vocês.

Por Natália Oliveira

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Reconhecer

A noite já se apresentava negra do outro lado da cortina do meu quarto, mesmo assim meu sono demorava a chegar. Deitei com o coração aos pulos, os olhos ligados, buscando proteção no edredom. Flexionei os joelhos, curvei a coluna, trouxe o ursinho de pelúcia para perto de mim. Era difícil assimilar o novo corpo, o novo universo. Precisaria reaprender. Eu sofria.
O novo tempo tinha arrancado a capa que cobria os meus defeitos, o vôo acabara no chão. Estava exposta, sem maquiagem. Num tombo, num caído provocado. Voltava a ser humana com H maiúsculo, sem vaidade, sem aumentativos alheios, sem supervalorização, pelo contrário era gente. Tudo estava claro agora.
Já vinha amontoando os meus defeitos num cantinho, enquanto os elogios me entorpeciam, me fazendo acreditar ser dona de uma essência acima da média. Sabia que uma hora chegaria a hora de libertar o que não me pertencia, o que viam a mais, mas sempre deixava para depois, era gostoso.
Vivi assim até que o prazer virou medo, controle. Roubou-me a liberdade de ser o que era realmente, de verdade. É um perigo acreditar no que dizem de você sempre, é um perigo quando potencializam suas qualidades ao extremo, quando te fazem mais.
Seria um dia normal, se eu não tivesse disposta a fazê-lo diferente. Já não queria mais guardar, sustentar, algo que já não servia mais, ou melhor, que sempre me foi largo, por isto deixei que se aproximasse e que percebesse que algo estava, mesmo, fora do lugar. No perdido ajudei a situá-lo no meu incômodo. Esclareci o meu mal, do jeito conseguido, com uma sinceridade cortante. Ele estranhou.
Brigamos. Ele com razão, eu por revolta.
A noite já se apresentava negra do outro lado da cortina do meu quarto, quando deitei. Sentia-me nua, descoberta, desprotegida, mas real!
“De tudo, fico feliz de apresentar meu lado não admirável, torto, mas que também me pertence.”.
Por Natália Oliveira

terça-feira, 20 de julho de 2010

Dia do Amigo

Aos meus amigos agradeço o ano inteiro, despretensiosamente em horários diferentes, em dias sem data. Eles sabem do meu amor infinito, tanto que faço questão de declará-lo sempre, mas hoje...
Hoje... No dia de hoje, as minhas palavras são daqueles que me deram todas as letras num dia só. Pessoas que passaram pela minha vida e cuidaram da minha alma, acalmaram o meu desgosto, seguraram as minhas lágrimas. Algumas cuidaram da minha fome, outras da minha falta de dinheiro e há quem pintou o colorido no escuro da minha casca. Outras enalteceram o meu nome e sorriram um sorriso impagável quando deixei moedas. Pessoas que me ensinaram geografia sem mapas, pedidos de beijo sem fala, dignidade no corpo vendido. Gente que me chamou de anjo. Gente com G e coração maiúsculos.
Bondosos por despertarem os mais belos sentimentos e audaciosos por me apresentarem os medos escondidos, gentis por me ajudarem tratá-los. Dividiram-me histórias, me convidaram para um mundo doloroso, mas seguraram os espinhos com as mãos para que nenhum deles me machucasse. Tomaram chuva por mim, me privaram do perigo. E no perdido me disseram que São Paulo não é para ser conhecido, mas do mesmo jeito deram um jeito de me achar. Até me pediram em casamento, acarinharam a minha rosa, me apresentaram colar de bolas com gosto de infância. Me protegeram em baixo de asas feitas de uma fragilidade forte.
Aos que me apresentaram a amizade num dia e me deram certezas de toda uma vida, ainda há gente de verso bonito. O Dia do Amigo sempre foi de vocês.
PS: Às senhoras da minha humanidade: Creusa, Diná, Natália, Velinha do óculos, Moça que vende o corpo, Fernanda, França, candidata à mãe, dona do colar de bolas. Aos senhores do meu sorriso: Felipe, moço da carroça, dono das muletas, parceiro da loucura, guardião da paz, menino do paraíso, Enoque, seu Vicente, senhor da salada, Antônio.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 16 de julho de 2010

À Dona dos Cachos Dourados

Você tem uma mania horrorosa de me olhar com olhos de lupa. Sempre me fazendo maior, mais competente, mais generosa, mais tudo de nada que sou. É uma mania insistente de potencializar qualquer momento bom em realmente muito bom. E claro que com bombom fica melhor ainda, porque você pode colá-los nos dentes e rir de todos os estereótipos de beleza que insistem em te convencer que o bonito é ser o tal do tipo ideal. Ah, com você não. O bonito para você se mede no tamanho do coração e isto ninguém pode ver e nem é uma lógica fácil de entender.
Na verdade, fácil de entender você nem sempre é. Ora ri com o estômago, ora chora com as tripas de fora. Intensa como a vida deve ser? Não sei, mas ser com você, já que é para ser, que seja direito! Você é!De pijama e tudo, no mar. De pés sem sapatos, de molequice em baixo do braço, de lordose e unhas roídas, mas de verdade! Com verdade transparente! Quem vê você, vê você. Frente e verso, fora e dentro dá no mesmo. E por falar nisto, injustiças fora, transformações dentro, assim é você.
Você de cabelos de criança, de olhos vivos e de um desejo meu. Se eu fosse mago a transformaria num cristal para apresentar para todo mundo um pedaço meu, o pedaço cristalino meu. Você não me explica, mas eu sei que é a sua doce essência que dilata os seus olhos quando olha o jeito meu. Você, minha amiga, minha parte, minha criança bonita. À minha Flávia, a menina de cachos dourados, a minha.

Por Natália Oliveira

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Veludo

Se poderei voltar a sonhar, deixo a resposta ao futuro. Estou feliz por ter conhecido pessoas como a Vã, a Michele e agora você. É uma realidade surpreendente a essa altura da vida. Ou um milagre, como você prefere. Não há mais amargura em mim.

Numa destas trombadas de calçadas apertadas seu coração derrubou tudo que guardava. De precioso, recolhi os sentimentos numa caixa de madeira, encapada a veludo. Lá dentro misturou tudo, o mais bonito com o mais vivido, no final das contas era um infinito só!

Por Alvaro Vianna e Natália Oliveira

terça-feira, 13 de julho de 2010

Menino do sorriso, do paraíso

Em todos os canais. Todos. O mesmo caso, a mesma morte, o mesmo desespero estampado na tela.
Eu já derrubei no teclado a minha angústia algumas vezes aqui. Já declarei minha previsão: a humanidade ainda se afoga em água salgada. É muita lágrima, diariamente e de enxurrada. E o nosso medo aos poucos ganha nome: Bruno, Mizael, Nardoni, Suzane, Lindemberg, entre tantos outros, que os novos casos nos ajudarão esquecer.
Na fila do supermercado, na sala da casa, nas mesas de cerveja e nos cantos da cidade o assunto chega e fica por tempo indeterminado. A dor enraizada petrifica as palavras, arranca do povo até a fé. A fé na alegria teimosamente perseguida e quem sabe conquistada. Na tristeza a descrença chega forte, rasteira já para derrubar. Salve-se quem puder!
Sexta-feira à noite é banquete para mágoa presente, porque é a hora que o ciclo fecha. O momento em que a cabeça tá livre dos deveres, mas a procura de se ocupar. Os pensamentos se apresentam, a realidade vem logo atrás, embutida em cada reflexão. Pontadas, levemente pontadas, mostram a conexão brilhante e dolorida entre alma e coração, cérebro e tudo isto. Inevitável.
Pensava em tudo isto, enquanto falava sobre outras coisas. Esperávamos pelo garçom, ele traria nosso refúgio em bandeja. Tínhamos escolhido uma mesa com quatro cadeiras, perto do parquinho infantil do restaurante. Algo no canto, diferente do que tinham nos sugerido. No salão vários pratos desfilavam por cima de nossas cabeças, a gente esperava. Tamborilando a impaciência nos dedos, te encontrei. Um vidro nos separava. Você no colorido, eu na escuridão da minha casca.
Comia pastel com papel e tudo. Em silêncio lhe perguntei: “às vezes viver neste mundo de grande é como comer folha amassada, duro de engolir, arranca água, sabe?” Você nem notava. Em algum momento me olhou e sorriu desconfiado, encostado em quem te protegia. Era pequeno de corpo moreno, não tinha mais que três anos. Com vergonha, eu pedia para entrar no seu mundo, mas senti minha passagem censurada. Talvez fosse pequena demais. Então você deitou o rosto no ar e o teu sorriso chamou a minha calma, acalmou a minha alma.
E a nossa esperança aos poucos ganha nome: menino do sorriso, do paraíso, ainda há.
Eu tenho sido mal representado por aqueles que não Me conhecem, mas não Estou ausente ou zangado (I Jo 4:16)pois sou a expressão completa do amor. Se deleite em Mim e Eu darei a você os desejos do seu coração (Sl 37:4)pois fui Eu quem colocou esses desejos em vocês (Fp 2:13)
Por Natália Oliveira

sábado, 10 de julho de 2010

A Carta

Fui ao centro de São Paulo a procura de um documento. Minha missão era clara: descer no ponto certo, achar o prédio do Sindicato e voltar para casa com a carta, sem me perder. Era tarde de outono, sexta-feira, o tempo estava fresco e o céu azul. Sai do escuro do metrô e o sol me recebeu. Encontrei a rua do mesmo jeito que estava, meses atrás, na última visita. A barraquinha de filmes no mesmo lugar, a banca de jornais na calçada e as cadeiras de plástico no bar ao lado. Tudo nos conformes.
Andei em direção a praça próxima enquanto me perguntava “reto ou esquina?”. As pessoas passavam apressadas, o vendedor de comida ensinava roteiro e uma música alta rolava. E eu tentava de todas as formas acionar a memória. Sai sem endereço. Sem nome de rua. Não dava nem para perguntar. Tinha horário, arrisquei alguns passos. Parei diante da construção amarela da igreja, “contorno ela ou não?”. A música, antes fundida com outros barulhos, se mostrava mais clara, agora. Sons de instrumentos um sobrepondo o outro, nada convencional. Diferente. De onde vinha?
Mexi o corpo a procura. Meus olhos encontraram um tapete marrom claro, feito de couro, estendido no chão, ali perto. Uma mulher de cabelos longos e pretos repousava as pernas cruzadas ao lado de um radinho a pilha. Os fios trançados ostentavam penas coloridas. Ao seu lado, um homem de pele dourada balançava pernas e braços, o vento batia no cocar enquanto ele dançava. Dançava sem parar. Quando a música já estava no fim, sem cessar os movimentos ele pedia à índia, ela voltada. Ninguém assistia ao espetáculo.
A tarde já tinha caído quando sai do prédio com o envelope. Talvez tenha sido isto, o azul marinho do céu me confundiu. Atravessei as avenidas paralelas embaixo do viaduto e continuei em busca do metrô. Demorei um pouco para perceber que estava perdida e mais ainda para encontrar alguém que soubesse me dizer por onde deveria ir.
Caminhei tudo de novo, sentido contrário. Não tinha quase ninguém mais na rua, os comércios estavam com as portas semi-abertas ou já fechadas. Na calçada torcia pelo vermelho do semáforo, quando o vi chegar. Vinha com os carros, mas vinha devagar, sem pressa. Olhei para o seu rosto de anos a mais e ouvi o seu convite. “Vamos casar?”. Não respondi nada ao cavalheiro, silenciosa segui, ele fez o mesmo. Cavalheiro sem cavalo, mas com uma carroça e bastante coisa dentro, até.
Depois de tanto, consegui chegar ao metrô. Entrei e sai depois de uma hora. O cenário era o mesmo, barraquinha, banca, cadeiras de plástico. Horário de pico, impossível entrar nos vagões. Esperei o quanto pude, mas não deu mais. O limite foi uma discussão entre dois senhores, brigavam porque um acusava o outro de empurrar. A verdade é que era cotovelo e atropelo para todos os lados, impossível achar o responsável. Vou de ônibus.
Insisti bastante até encontrar alguém que soubesse. Ela. Desviava de pessoas sentadas em volta de mesas regadas a cerveja e segurava a bolsa com força. Parou desconfiada quando a abordei. Expliquei que eu devia procurar por um ponto ao lado de um Bradesco, mas não sabia como chegar lá. Em resposta, ela me olhou nos olhos e me explicou pausadamente para que eu entendesse. Agradeci e então ela se aproximou um pouco mais e me suplicou cuidado, “lá é perigoso, tá?”. Algo de maternal transbordava naquele pedido.
Cheguei ao ponto e recorri ao homem de camisa pólo e ar descansado. Contei minha aventura no centro, “me perdi pelas ruas, meus planos de voltar para casa de metrô não deram certo e agora preciso de um ônibus, que eu não sei qual é”. Por sorte ele sabia. Agradeci. Permanecemos em silêncio até que ele pediu para que eu não ficasse chateada por me perder em São Paulo, afinal de contas “quem não é daqui, estranha mesmo, é normal”. Não sei se minha expressão denunciava algo não sentido, mas ele pareceu se preocupar. Logo o letreiro luminoso deu vida ao meu destino, dei sinal e antes de subir ele me lembrou o caminho. “Não esquece”.
Minha missão era clara: descer no ponto certo, achar o prédio do Sindicato e voltar para casa com a carta, sem me perder. De tudo, passei pela selva, abandonei meu noivo, conheci candidatos a mãe e irmão e ainda voltei com a carta.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A Paz da Minha Paz

Eu corro, mas a paz me chama. Invade-me aos poucos e convida-me de um jeito irresistível a ficar junto. Eu tento um argumento, mas ela é teimosa, não aceita, não arreda pé. Amiga íntima da vida que passa e que sabe o que há de melhor, me convence. Eu entrego a minha alma, então. Ela fica satisfeita e me alegra de um jeito doce. O suspiro carrega o vento, a tarde cai ao nosso alcance.

Por Natália Oliveira

terça-feira, 6 de julho de 2010

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Ou não

Foi uma coincidência incrível. Minha mãe me pegou pelo braço e disse “Naty, veja se consegue baixar Mãos Talentosas, o pastor Ricardo disse que é ótimo”. Era domingo, na igreja, ela falava aos cochichos. No dia seguinte uma amiga, o pequeno Sol já mencionado aqui, me mandou e-mail sobre a mesma coisa: “precisamos combinar de ver Mãos Talentosas, é lindo, lembrei de você”. Hoje vejo pela segunda vez a história de Benjamin Carson.

Não sei fazer críticas de filme, mas está tudo tão aos montes aqui dentro que as impressões estão pulando no teclado. Carson nasceu em lar pobre, filho de pai ausente e mãe analfabeta. Na escola somava notas ruins e sofria constantes gozações de outros alunos, algumas vezes resolvidas com agressões. Discriminado por ser negro, não via potencial em nada que fazia.

O que de bom poderia vir de Carson? Ter nascido em solo estrangeiro não impede de enxergarmos o destino. Temos exemplos todos os dias, nos faróis, nas calçadas, nos noticiários. Quando viram documentários, o acesso de compaixão vem certeiro. O que esperar de alguém que sofreu tanto? Revolta, claro. Uma mínima reação a tudo de ruim que aconteceu. Ou não. O ou não é fascinante.

O ou não une dois extremos: a dúvida e a certeza. A dúvida dos ultimatos e a certeza de que se pode ir bem mais além do estipulado, é só trabalhar duro e não conhecer o limite.

Por Natália Oliveira

domingo, 4 de julho de 2010

Take for me

Aproveitei a luz do quarto e me ajoelhei. Não consegui dizer nada, além do pedido de ajuda num balbucio. Pedia um encontro, meu coração gritava.

Sai de sua presença triste. Realmente triste. Uma vontade boa de chorar apertava meu peito, mas nem as lágrimas me acompanhavam.

Depois de tanto sorriso sincero, meu coração espremeu, desespero veio levemente e de repente se instalou sem dizer por que.

Um desabafo, amigos ao socorro, as lágrimas rolaram grossas. Reaprendi a soluçar. Chorei com todo corpo.

A água inundou tudo, molhou o roxo do vestido. A onda trouxe o profundo e eu entendi: medo de viver do mais autêntico. Medo de usar os dias sem saber se são mesmo para o que tenho feito.

Quando a margem cessou, sequei os olhos ainda marejados e num agradecimento sem palavras senti o que precisava: a falta de certeza, mas a doce presença em qualquer caminhada.

Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. João, 14:1 -

Por Natália Oliveira

A Vida

A vida, em muitos momentos, não me sorriu, ainda que as evidências de uma felicidade tenham sido tão claras.Mas viver é isso! lutar constantemente, sem desistir, mesmo quando tudo parece estar perdido.Muitas lágrimas já rolaram e tenho medo só de imaginar quantas ainda terão de vir. Amigos que se foram, amores que partiram, desilusões, mágoas, tristezas. De tudo isso, o que resta é a saudade, a lembrança de um tempo bom... que não volta nunca mais. Enfim, viver é isto. Momentos de felicidade que são tão efêmeros. É essa efemeridade que a torna tão dolorosa, tão difícil.

Quero uma felicidade permanente, sorrisos em lábios que me beijem. Quero, não a ausência de problemas, mas as mãos que se unem para resolvê-lo. Quero um poema que cante a eterna presença daqueles que se foram. Quero a vida, a vida bem sentida. Quero as lágrimas que suplicam um afago acessível. Abraços demorados, gargalhadas que nos levem ao chão. Quero amor eterno, destes que não se encontram mais. Quero amor, destes que não se compram nem se vendem, mas que se recebe de graça e pela graça de uma doação sincera, sensível e simples. Eis o meu ideal de Vida.

Um dia encontrarei esta Vida.

Por Renato Marques, meu amigo. Meu fiel e bondoso amigo.

Visitem o coração dele: http://poemado.blogspot.com/

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Sobre meu lado mediano

Eu assumo meu lado mediano e desde então a gente convive bem. E é um bem para melhor, com leveza e picos de felicidade. Já não há espaço para pressão, mandei-a embora por justa causa. E deixei avisado na portaria: caso ela volte mostre o aviso colado na fachada “não aceitamos comparações”.

Eu sei o tamanho do meu lado mediano, não preciso de dedos apontados para lembrá-lo. Sei que ele é um gigante diante de uma menina, mas ela tem uma vida inteira ainda. E tenho dito: nada de receber caixas de ultimatos e sacos de prazos, um passo atrás do outro, direto para casa e cara nos livros. E pernas na estrada. E mercúrio nos joelhos. E experiências das cicatrizes.

Eu sei o tamanho do meu lado mediano e já preparei o tênis, por isto não me venha com teorias prontas, porque é na margem que eu me encontro. São das pegadas menos exploradas que eu trilho o meu caminho. É sem pressa e nos intervalos que entendo de tudo. É na rua, é no meio, é no cheio.

É na conversa com ilhas, com amigos, comigo. É me carregando às vezes, é me abandonando outras, é me reconhecendo. É no foco da busca, é na direção contrária, é no destino mutável, é na estrada de gente. É ao lado do meu lado, é na direção da minha vida, é na busca dos meus desejos, é na força para vencer os medos. É na certeza do meu mediano, é no perceber das minhas falhas, é na disposição para consertá-las, que eu chego. Eu chego.

Por Natália Oliveira

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Pérola Negra

Desci do ônibus e você tava lá, sentado. Mas antes mesmo do motorista abrir a porta já te via, você não, ainda. Me aproximei e perguntei de você a você, sua resposta foi linda como a outra, um sorriso aberto de afastar os dentes, todos marrons. Sem palavras você esticou o braço, fui ao seu encontro e ganhei um presente estalado, gostoso. Estiquei as costas, mas você me chamou de novo, curvei o tronco e com leveza você juntou o meu rosto ao de sua “mama”. Ela abriu os lábios num sorriso, faltava um dente, mas era incrivelmente bonito, como o seu. Sorrimos os três. Atravessei a rua e antes de me entregar a corrida de atraso, olhei para o lado, você abria os braços pedia um abraço.
Certa vez ouvi dizer que a vida é um mosaíco, gosto da ideia e busco organizar as minhas peças. Algumas encontro em mim, outras em minha família, outras nos meus amigos, mas há aquelas que exigem mergulho e disposição para encontrá-las, não são vistas diariamente, é preciso treino, desprendimento. Ainda assim, viver sem elas é como pegar uma concha e se perder em suas cores, sem ao menos notar a beleza da pérola.
Por Natália Oliveira

terça-feira, 29 de junho de 2010

Flaques d'eau Noire

....Há alguns dias numa churrascaria conversava com uma amiga sobre o meu mal em geografia...
O ombro dela batia em meu cotovelo. Parecia um bibelô. Olhos vivos e pequeninos, nariz fino e lábios grossos, tudo pintado de marrom. Nos cabelos crespos, caprichosamente penteados para trás, uma tiara branca. Desci do ônibus e parei ao seu lado. Ela se virou e, olhando para a camisa do Brasil que eu vestia, perguntou o resultado do jogo. “3 a 0”. Num sorriso juntou as mãos roliças, olhou para cima e disse que até orava para Deus ajudar no jogo.“Pq. a gente se esforça, mas Deus dá uma forçinha, né?”.
Das perguntas que fiz, só respondeu que trabalhava em casa de família e que lá ninguém parava para ver partida. Depois se concentrou em me contar a história de sua vizinha e a luta para conseguir emprego. “Ela não tinha faculdade, se sentia burra, mas era esforçada, sabe?” Sei, pensei. “Ai ela queria muito entrar numa empresa e os outros candidatos tinham muito mais preparo, só que ela era esforçada e acabou conseguindo.”.
Contava sem olhar para o meu rosto, mas às vezes, de repente, olhava fixamente em meus olhos, franzia um pouco a testa e com um ar de estranheza silenciava. Algo de pueril transbordava naquelas pequeninas poças negras, eu mergulhava. Do assunto da amiga, me falou do seu companheiro. Daquele que ela pede para dar uma força para a seleção ganhar. Recitou de cabeça algumas palavras Dele e me deixou o Salmo 112 para desfrutar.
Entre um letreiro e outro, apareceu o meu destino. O ônibus parou além do ponto e as pessoas subiram ligeiras. Antes de deixá-la, perguntei seu nome. “França e o seu?”. “Natália”. Numa nítida surpresa ela sorriu com empolgação. “Minha filha adora este nome”, disse e acompanhou meu caminho em busca do ônibus, que já se preparava para sair. Deixei França ali, em Santo Amaro. Cheguei em casa, abri a bíblia, li o salmo, fechei o livro com um sorriso, fazia graça. Geografia de pele morena, poças negras e ar sereno, ali, do meu lado, entre a rua e a calçada... e eu todo este tempo em busca de mapas...
Por Natália Oliveira

sábado, 26 de junho de 2010

Damas primeiro

O motorista parou um pouco antes do ponto, já que, como de costume, as pessoas não o deixaram avançar. Mesmo com as poltronas cheias, tinham pressa. Nunca entendi isto, subiam às cotoveladas e aos empurrões e no fim paravam juntas em pé. Se fossem um pouco mais serenas não somariam roxos e nem dores colaterais, mas povo brasileiro é povo da luta, né?
O ponto esvaziou quando da esquina o letreiro do Jardim Selma apareceu laranja. Um lago de cabeças se formou na porta, antes mesmo dela abrir. Com alguma distância, eu e uma amiga assistimos saltos, tênis, sapatos sociais e sandálias sumirem escada a fora. Ao ponto que subiam cheios de pressa, um homem se esquivava do desespero alheio com movimentos curtos para trás.
O lago deságuo logo e num movimento mútuo nos aproximamos da porta, eu, ela, ele. Num gesto de cabeça, ela pediu que ele entrasse primeiro, o homem tinha as pernas duras, esticadas, mortas. Ele então esticou o braço, largando parcialmente uma das muletas, fez um gesto para o lado, cortando o ar, e com um sorriso de dentes separados disse “as damas primeiro”.
...Deficiência é a corrente frágil que aprisiona o coração, mas o cavalheiro valente encontrou a gentileza quase rara e mudou minha visão
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Logo

Tarde de inverno com cara de outono. Temperatura regulada a mão, nem quente, nem frio, morno. Sexta-feira, hora de ir embora, no ponto. Feliz pelo clima e pela bendita hora: em qualquer momento ou situação, sempre apaixonada por fim de tarde.
Esperava pelo ônibus quando ele chegou, não notei sua presença. Fitava os carros que subiam depois de virar a esquina, sempre velozes, sempre com pressa. Distraída, levei um susto quando de repente puxou a alça da minha bolsa.
Há alguns dias, luto com os meus pensamentos. Tanto noticiário, tem hora que a cabeça dá um nó. É muito desespero alheio. Sei não, às vezes até penso que o mundo acaba em água, mas nem sempre, às vezes me aciono, me converso, me acalmo.
Distraída, levei um susto, olhei rápido por cima do ombro, ninguém. A bolsa continuava no mesmo lugar. Já calma, olhei para o lado oposto, ele, com auxílio das mãozinhas atrofiadas, se preparava para sentar.
Me aproximei. Tinha os olhos puxados e um rostinho da turma que carrega cromossomo a mais. “Você chegou e eu nem te vi, né?” Sem palavras, esticou o braço em minha direção, cheguei mais perto, encurvei o corpo e deixei que seus dedos bagunçassem meu cabelo. Em sons me fez um pedido, virei o rosto, ganhei um beijo. Retribui e ele sorriu um sorriso bonito, de boca aberta, destes de afastar os dentes.
“Você tá passeando?”, ele sorriu de novo, esticou o braço e apontou uma senhora de cabelos crespos, presos, encostada numa estrutura de metal. “Mama, mama”. Virei o rosto, nossos olhares se encontraram, ela sorriu tímida. Em silêncio agradeci por me compartilhar seu presente.
Logo se levantou, logo foi embora, logo senti saudade.
Por Natália Oliveira

Surdez

Surdez consciente é a pior coisa que existe, porque cala o coração alheio na marra.

Surdez afiada machuca, porque obriga a esperar uma vez que não vem, não vem.

Por Natália Oliveira

domingo, 20 de junho de 2010

Diá rio

A noite estava fria, mas quando a encontrei ainda não chovia. Estava de branco e apesar do frio vestia blusa sem mangas. A regata trazia uma data, destas roupas que compramos perto do ano novo, só não consigo me lembrar o ano. As pernas tinham a mesma cor do resto do corpo, um branco quase amarelo, típico de quem não vê o sol há tempos. Sem destaque algum, usava um shorts de tecido fino, justo e curto que puxado marcava a intimidade.
Era domingo, mais de dez. Passávamos por lá por pura diversão. Numa travessa bem iluminada, estava sozinha com fones no ouvido. Decidimos aproveitar. Quando paramos o carro ao seu lado, encurvou o corpo em direção à janela aberta, os cabelos negros, visivelmente alisados do meio para baixo, acompanharam o movimento e foram levados num gesto lento para atrás da orelha. No topo da cabeça os fios sem química cresciam livres, deixando um armado inevitável.
À primeira pergunta respondeu sem constrangimento. “É R$50”. À proposta seguinte respondeu tímida, num sorriso largo. “Não, eu tenho vergonha. Muita gente! Vocês têm mulheres lindas ai com vocês. Vou não, vou não”. Para falar a verdade, nem a gente ia, passávamos por lá por pura diversão. Aceitamos a negativa como uma forma de sair, mas não antes de saber que morava em Jundiaí, sozinha. No trabalho até 00h00 e nem sempre por ali. Foi com a mesma alegria que perguntou e soube de nós também.A despedida foi marcada por lembranças de Deus. “Fica com ele, você também”.
Nela existia uma doçura acentuada, ainda não perdida pelo amargo do asfalto. Algo que motivava um desejo de cuidar, de sentar à mesa pra comer e conversar. Algo diferente no rosto miúdo, olhos puxados em tons claros. Diferente. Passamos por mais algumas ruas, comentamos o encontro e desde então pensei nela alguma vezes. Onde estaria neste momento? Penso. É dia. Se pudesse ser herói certamente tiraria desconhecidos do corpo dela e traria a sua boca o gosto do dia.
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Alimenta de que?

Vestia um uniforme azul marinho. O nome da empresa vinha num branco discreto no peito, lado direito. Era igual a todos os outros da equipe de limpeza, gola em v, mangas curtas, botões na frente. Ele, porém, nunca tinha visto ali. Ou melhor, nem ali, nem nos corredores, na saída ou entrada de banheiros, no pátio. Nosso primeiro encontro acontecia naquele momento, no refeitório.
Diferente dos outros dias, todas as mesas estavam ocupadas. A máquina de refrigerante exigia paciência e uma fila extensa separava os recém-chegados da prateleira com bandejas, pratos e talheres. A bancada com o cardápio, construída no centro do salão, estava repleta de pessoas dos dois lados. Enquanto se serviam, dois homens brincavam com a quantidade de comida que um deles colocava no prato. “Tô em fase de crescimento”.
Em toda a extensão do local, indecisos andavam de um lado a outro e acabavam por parar nas filas do fundo, onde serviam opções mais lights e gordurosas. A mulher de cabelos pretos, rebeldes e com luzes passava pelas minhas costas e lamentava a escolha do horário. “Devia ter descido mais tarde”.
A fila andou e dei espaço para o próximo pegar salada. Os tomates estavam vermelhos e a rúcula verdinha. Esperava pelo arroz quando alguém atrás de mim falou alto. “Hei, isto não é sopa!”. Foi a primeira vez que o vi. Estava parado, estático. As pessoas o olhavam. Ele segurava uma cumbuca de porcelana e nela tinha molho de salada. Tomado de vergonha o homem contorceu os lábios, deixando à mostra os dentes mal cuidados. Vestia um uniforme azul, igual a todos da limpeza.
O refeitório estava cheio. Num gesto de nítido desespero levantou a porcelana da bandeja e sem saber o que fazer retornou-a no mesmo lugar. Percebendo o movimento, uma das atendentes recolheu a louça e pediu para que ele pegasse uma outra, limpa. Ele foi, eu sai em busca de uma mesa. Sentada o vi passar com o prato vazio, depois de alguns instantes. Olhei para os seus olhos numa tentativa de lhe dar conforto, ele só olhava para frente, parecia com pressa.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Pérola Negra

Desci do ônibus e você tava lá, sentado. Mas antes mesmo do motorista abrir a porta já te via, você não, ainda. Me aproximei e perguntei de você a você, sua resposta foi linda como a outra, um sorriso aberto de afastar os dentes, todos marrons. Sem palavras você esticou o braço, fui ao seu encontro e ganhei um presente estalado, gostoso. Estiquei as costas, mas você me chamou de novo, curvei o tronco e com leveza você juntou o meu rosto ao de sua “mama”. Ela abriu os lábios num sorriso, faltava um dente, mas era incrivelmente bonito, como o seu. Sorrimos os três. Atravessei a rua e antes de me entregar a corrida de atraso, olhei para o lado, você abria os braços pedia um abraço.

Certa vez ouvi dizer que a vida é um mosaíco, gosto da ideia e busco organizar as minhas peças. Algumas encontro em mim, outras em minha família, outras nos meus amigos, mas há aquelas que exigem mergulho e disposição para encontrá-las, não são vistas diariamente, é preciso treino, desprendimento. Ainda assim, viver sem elas é como pegar uma concha e se perder em suas cores, sem ao menos notar a beleza da pérola.

Por Natália Oliveira

segunda-feira, 31 de maio de 2010

"Nós não somos homens e mulheres viajando por um deserto sem água, nós somos homens e mulheres viajando por uma fonte de água doce e estamos morrendo de sede." Ricardo Gondim.

Por Natália Oliveira

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sapato Apertado

Às vezes angustia. É como precisar calçar um sapato que não lhe cabe mais. Sentir o couro lhe estourar bolhas, rasgar a pele, manchar a meia de sangue e ainda assim persistir, continuar caminhar. É como sentir que tudo se resume ao apertado, ao pequeno, ao impróprio demais. É como se de repente o sol de dentro saísse rua afora e se escondesse em algum lugar jamais conhecido.
Às vezes angustia. Na imensidão do mundo, ainda me falta espaço. Conhecimento tem hora que prende asas, sufoca. Há momentos que, mesmo diante de tanto chão, muros de notícias me coagem, me espremem, me aprisionam. Assustam! Então, tudo que desejo é lavar a alma. E a água vem. De enxurrada, de várias fontes-faces. É um cenário dolorido, é como ver o coração partido, ver o amor jorrar. Sofrido.
O silêncio cala a alma contrita. Coisas profundas dificilmente alcançam à superfície.
Subi no ônibus e logo mergulhei na primavera de Clarissa. Pétalas amarelas, azuis. Um piano de fundo, uma música sem coesão a tocar, o avião a cortar o céu. Uma conversa infantil, doce, insistente. Fechei o livro. A voz suave continuava a falar, olhei para o lado. Parecia uma pintura. Olhos redondos, negros e vivos, num rosto marrom forte. Perguntava coisas do mundo à mãe. Não tinha mais do que quatro anos.
Voltei a ler, ele a falar. Espichei o pescoço, desviando da mulher recém-chegada, lá estava ele grudado na janela. Voltei à Clarissa. Minutos depois percebi que minha cabeça não estava mais ali, guardei a companhia da menina dentro da bolsa. Ele olhava atento cada gesto meu. Sorrimos. Os dentes pequeninos e alinhados brincavam com um chiclete e ao mesmo tempo afastavam as bochechas num alargar de lábios. O retrato era, certamente, uma poesia. Meu coração acalmou.
Coisas profundas dificilmente alcançam à superfície, mas há quem encontre o sol em terrenos inférteis e oferte aos carentes de alegria.
Conhecimento tem hora que prende asas, mas agora eu posso buscar a ]ausência dele em sua poesia.
Por Natália Oliveira

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ao contrário de

Eu subia já descalça, com as sapatilhas nas mãos. A calçada do condomínio massageava os meus pés cansados, enquanto a tarde caia de um jeito bonito. O tempo estava fresco, confortável, o céu azul, sem nuvens. Da viagem do ônibus até cruzar o portão, já fazia planos: chegar em casa, deixar a cabeça em silêncio e desfrutar da minha companhia. Delícia! Enfim, sexta- feira.
Já perto do meu prédio, ela me encontrou. Óculos redondos, bolsa pequena nos ombros, cabelos acinzentados e histórias da neta para contar. Éramos vizinhas, há algum tempo, e sempre que podia, fugia dela. Justificável ou não, a maioria fazia. Atrasos, trabalho, compromissos inadiáveis, urgentes nada a convencia parar de falar. Ela sempre dava um jeito de segurar seu braço, a porta do carro, a conversa. Era desesperador, às vezes.
Quando a encontrava no elevador, esperava que escolhesse uma das portarias e fazia o mesmo, escolhendo a contrária. Para não agir com falta de educação, preferia evitá-la. Eu tinha horários e tudo que ela tinha a dizer não cabia em menos de 40 minutos. Eram discursos sobre a família de cientistas, sobre a nova síndica, sobre a vida em São Paulo, sobre mercado de trabalho. Não tinha Jeito.
A última vez que nos vimos foi neste sábado, quando eu saia para trabalhar. Descia os degraus do prédio em direção à garagem, quando ela me encontrou. Antes que eu pudesse continuar, ela me segurou pelo braço me envolvendo num abraço forte, fraternal. Sem afrouxar os braços, disse que ia se mudar e deixava comigo “toda sorte do mundo”. Ao contrário de todas as outras vezes, foram estas as únicas palavras que disse. Ao contrário das outras vezes, eu queria que tivesse falado, que tivesse me feito ficar.
Um aperto no peito, deu saudade.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 14 de maio de 2010

As Ruas Falam

"Às vezes, em nossa profissão, você não precisa fazer perguntas. Basta ir às ruas e olhar as pessoas. E ai que você descobre a vida como ela é realmente vivida"
Por Gay Talease

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Medo de Escuro

E de repente, percebi que perdi o medo do escuro. De repente andei na rua, sozinha, sem companhia alguma. De repente esqueci que tinha medo dos boatos de assalto e me vi no ônibus mais de 11. De repente senti que tinha uma lanterna dentro de mim, algo pequeno impresso em minha alma mas que, contradizendo o tamanho, iluminava a coragem escondida por tanto tempo.
De repente descobri que podia ser sozinha na vez da lua e poderia encontrar o verdadeiro significado de estar viva, sendo livre. De repente descobri que apesar do medo, era melhor estar solto do que preso e que nem havia tanto medo, mais. Podia acelerar o passo, mas prefiri contar com a ideia de que trabalho não tem cara nem lugar, a maldade também não. Eles podem ser convenientes em qualquer hora e numa delas posso estar, na hora do sol ou das estrelas.
Por isto não cabe tantas fugas assim. Fugir é escapar da vida e, mesmo que não seja esta minha morada eterna, não quero construir muros entre eu e o mundo.
Sei que de tudo, a sua luz eternizou a mais bonita forma de viver em mim e hoje eu posso voltar a ver a lua de perto, da rua.
Ao meu eterno sol,
Por Natália Oliveira

domingo, 9 de maio de 2010

À minha

Ela tem uma beleza frágil que exige cuidado ao olhar. Como uma pedra preciosa, é delicada ao lado de cicatrizes que ajudaram a lapidar o brilho da essência mágica que traz no peito de poucos seios. Os braços são finos, mas suportam sacolas pesadas, filhos pequenos e ônibus lotados.
Os cabelos finos carregam a imagem da primeira boneca, feita de espiga de milho, que ganhava vida em mãos pequenas e roliças. Corriam de um lado para o outro, pés descalços, sujos do jardim de barro da casa simples.
Na infância, pais e mães separados, na vida adulta, a melhor referência de família que poderia entregar de graça presente.
É dona de uma olhar de super heróis, identifica qualquer dor camuflada, por mais escondida que esteja, e diante de qualquer segredo necessariamente confidencial, silencia.
E do significado que leva, é uma das mais bonitas personagens, mãe da forma mais bela.
À minha em especial, mas deixo meu abraço a todas, por nos darem o privilégio da vida.
Por Natália Oliveira

sábado, 1 de maio de 2010

Enoque, Fernanda, Eu

Alcancei o primeiro lugar, unitário, do lado oposto à porta e ao cobrador. Estranhei a falta de gente, no horário de sempre. O espaço entre o pensamento e o gesto de abrir o livro foi interrompido pelo boné, a camisa gasta, aberta até o terceiro botão, de cima para baixo, e a barba no rosto. Antes de passar a catraca virou o rosto para o lado e disse algo à mulher que o esperava, atrás. Voltei às páginas.
O vi, de novo, quando deixou sua cadeira, no fundo, para conversar com o cobrador. Perguntava sobre algumas ruas e no final de uma das perguntas concluiu “onde fica a Band é que eu quero ir.” O homem moreno, preso pela caixa de dinheiro, disse que sabia onde era e que avisaria na hora certa. Ele voltou à companhia da mulher, eu baixei os olhos às linhas.
A alguns metros do ponto, dei sinal. Olhei para trás e vi que o homem olhava curioso tudo que passava velozmente pela janela. Olhei para o lado e vi que o cobrador continuava imerso em pensamentos. Olhei para frente e vi que era hora de descer. A minha e a deles. Ele me ouviu tirando o protetor de ouvido - laranja encardido - com uma das mãos. Respondeu em seguida, descemos juntos. Foi neste momento que olhei para ela.
Alaranjados, fios molhados, fios brancos, fios secos, juntos. Uma faixa de fundo branco levemente florida contornava o rosto, deixando o cabelo todo para trás. Não era liso nem enrolado, eram ressecados, um pouco rebeldes. Não lembro o que vestia, sei apenas que algo era azul. Lembro também do seu sorriso, faltavam alguns dentes, mas os que tinham, se ocupavam bem no espaço.
Caminhamos alguns metros em direção à Rádio e Televisão Bandeirantes – a Band, eu cumprir o trabalho, eles. E vocês?. INSS. Vou conversar na portaria, porque eles são jornalistas e devem saber me dizer o que eu tenho que fazer. Na televisão eles falam direitinho o meu problema, o Datena. O coração apertou. Moramos no Grajaú, há duas horas daqui, mas eu posso ficar até às seis da tarde para resolver o problema do meu dinheirinho. O coração apertou. Será que eu consigo? Antes que eu pudesse, a mulher de azul disse “consegue, Deus já mandou um anjo para gente”, sorriu para mim.
Andamos mais um pouco juntos, Fernando, Enoque e eu. Despedi, desejei boa sorte, sorri. Eles sorriram também, estavam confiantes. Antes de entrar na empresa, um último olhar, ele acolhia os ombros dela e dizia “minha assessora”.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A Partir De

Certa vez perguntaram a um aposentado qual era a maior riqueza de um homem com mais de oitenta anos. E ele respondeu. “O poder de discernir o que realmente importa daquilo que não tem nenhum valor”¹. Quase enlouqueci quando li, logo minha cabeça que sempre me convenceu de ser tão madura, tão certinha. Mergulhei em lágrimas, fui ao fundo do poço pelo buraco que eu mesmo criei.
Rasguei os planos, chorei. Recebi amigos, os assustei. Sempre tão certa....
Senti a dor de estar errada com todos os pedaços que um dia me formei...
Mas a sanidade volta, com ela a clareza de ideias, a queda de extremos e hoje, com toda a firmeza que me resta, declarei:
Volto a andar na terra descalça, a deitar com o sol, a rir sozinha. Volto a olhar os pássaros, a abraçar as árvores, a permitir que me achem tonta demais. Volto a fazer caretas em frente ao espelho e cantar alto, a comer por desespero e estalar os dedos por ansiedade. Aprendo a sair do controle. Passo a aceitar que posso errar, passo a dar razão. Volto a ler meus livros.
Não dispenso mais nenhuma conversa com minha mãe por estar cheia de trabalhos e digo que a amo setenta vezes nove. Não perco mais oportunidades de me conhecer, faço questão de olhar para os meus medos, conto os meus defeitos e faço força para melhorá-los, mas não me cobro, tanto, mais. Respeito os meus limites.
Passo a apreciar mais ainda a liberdade. A liberdade de ser quem sou, a sua de ser quem você é. Me disponho a somas, busco sua essência.
E então, quando o dia acabar, descalça deitarei junto ao sol...
[Sem Perder a Alma – Ricardo Gondim ¹.
Post escrito em 19 de janeiro, perdido em minha caixa de e-mail, acho que vale publicar.
Por Natália Oliveira

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Me dá um presente?

Hei! Você pode me dar algo de presente? Algo bem grande? Tão grande que não dá para carregar? Não, o que eu quero eu posso ver de qualquer lugar.
Você pode me dar? Como está o céu ai? Como está? Você pode me contar? Tem muitas estrelas? Você é capaz de fazer um pedido a uma delas?
A lua já está perto ou se esconde no azul marinho? Hei! Você pode me contar?
E se o teu céu tem nuvens, que desenho você pode me dar? Qual desenho você pode me entregar? Em? Qual você pode transformar para me ofertar?
O seu tem gotas? Você pode molhar suas mãos um pouquinho para me dizer que temperatura está? Você pode? Encheu rápido ou devagar? Você pode me contar?
Você tem janelas? Você tem olhos? Você pode enxergar? Você pode me contar? Como está o seu olhar? Você pode me falar?
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Eu Ela Meu

Ela olha o colar e só. É o suficiente para uma sensação boa invadir o peito. O colar no peito alheio invade o seu coração. Coração de criança emocionado ao lembrar dos tempos de escola. Uma flor colorida de lã ou crochê, amarela e azul. Flor pendurada por bolinhas lembrando douradas, muitas, colar comprido, flor baixa.
Ela olha, de repente. A mulher no balcão ao lado, o vidro separa o que é eu do que é ela. Ela nem olha na verdade, conversa com outra. Ela eu que olha. E olha por que quer algo para ver, mas de repente encontra uma florzinha de lã ou crochê, amarela e azul. Nem sabe porque, mas ali tem escola.
E se tem escola tem paz que invade o peito do coração alheio. Alheio meu, ao menos. Alheio eu ela meu. Uma florzinha de lã ou crochê no preto da blusa dela, nos castanhos dos olhos meus rouba tudo e devolve a paz de tempos que um dia foram meus. Eu ela meu. Ela o olha o colar e só eu. E quando pensa em perceber, some com tudo que era meu. Onde está o eu ela meu?
Por Natália Oliveira