quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Cadê sua mochila?

Eu voltava para casa quando te vi. Eu na janela, você na calçada. Eu de roupa social, sapatos e cara de cansada, você de camiseta azul com o nome no peito. Era Renan? Não lembro. Eu tive pouco tempo. As pessoas desceram rápido e o motorista não esperou eu terminar de olhar. Ele precisava ir, mas eu...queria tanto ficar. Engraçado, você. Sentado, braços abertos, estendidos. Suas mãos seguravam a grade que apoiava o seu corpo, lembra? O que a grade cercava? Você sabe? Era verde, extensa e fazia a segurança de um prédio branco, baixo, que eu não sei o que é e você, sabe? Hei, menino, você sabe?
Eu só consegui olhar para você, pro teu nome escrito a canetinha no branco da etiqueta escolar. Mas cadê a sua mochila, menino? Você não tá com nada para anotar? Cadê a lancheira e a régua pra marcar? Você não trouxe nada? Eu posso ver só os seus olhos e sua pele negra, é o que consigo olhar. E pelo que vejo, não há nada do seu lado, além das mulheres que continuam conversar. Alguma delas é sua mãe? Ou está sozinho? Mas alguém deveria te cuidar, afinal não tem mais de nove anos. Agora eu vou ter que te deixar, pq. o motorista já vai, tá? Antes disto, só preciso saber. Cadê sua mochila menino? Ela deve tá em algum lugar. Vai procurar! De onde onde você tirou a paz que você me dá? Ã? O meu sorriso, eu te dou, se você jurar que vai guardar.
Até de repente, menino.
Feliz Ano Novo todos.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Feliz Natal

Era uma fila sem fim. Uma fila que tomava conta de todas as faixas da avenida, um mar de pneus, de janelas, de carros com ondas em formatos diferentes. Era noite. E noite. Noite de um domingo, depois das dez. Dia em que as pessoas se guardam, se fecham, se entregam às camas, ao desanimo, ao despertador programado. Dia em que os semáforos geram medo no vazio, dia em que os percursos, por mais pequenos que sejam, são boas e inovadoras estradas. Mas...algo estava diferente ali.
Não chovia, o clima era ameno. O céu estava azul, sem estrelas e, para falar a verdade, se tinha lua, não lembro. O que não foge a minha memória é o tempo em que fiquei ali, parada. Foram mais de duas horas para dar a volta, para fazer a curva que, em outrora, faria em cinco minutos. E não dava para fazer nada além de esperar, os motoristas cruzarem o pedaço de rua que restava. E eles faziam da maneira mais devagar que podiam, mais lenta. Outra coisa estranha. Não existiam buzinas. As pessoas colocavam a cabeça para fora a todo momento e se olhavam com uma satisfação singular.
Em busca de resposta, me aproximei da janela, ao meu lado, em outro carro, uma família. Eram cinco rostos redondos de olhos puxados, dois mais vividos, os outros ainda infantis. As janelas estavam sujas, mas pude ver bem o garotinho que se esforçava para ficar entre os mais velhos, no meio. Com as mãozinhas pequenas segurava o encosto dos bancos da frente e mantinha o corpo ereto, o mais próximo da janela, o máximo que podia. Lá dentro estava escuro, mas as luzes brilhavam coloridas e, por algum momento pensei que a explicação de tudo aquilo estava ali, naquele menino.
Seguimos, ao ritmo contrário das luzes da árvore de Natal, construída no meio da cidade, do caos. Seguimos devagar, no ritmo do encanto daquela criança que dizia um pouco do Papai Noel. Algo estava diferente ali.
Feliz Natal!
Por Natália Oliveira

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Ao meu motivo, sua breve história II

Hoje encontrei Creusa. Estava no banco da frente com a mesma calça jeans de outrora, marcando os ossos, como da outra vez. Sentei ao seu lado e ela me explicou a beleza da blusa que vestia, de linha, listras coloridas, cores claras. A patroa havia dado, os calçados de plástico também. Apressou em me dizer que não ligava para a moda, vestia o que tinha, já que o importante mesmo é não deixar os filhos com a barriga seca e a casa sem água e sem luz. Casa que sempre tem um “café digno e que não causa vergonha a ninguém”.
Vergonha tem a filha de usar usado, quer uma roupa nova para passar o Natal. Disse a Creusa que os Shoppings estão lotados e ela respondeu que Santo Amaro também. A menina, de 13 anos, precisará escolher entre as que tem, a mais jeitosinha, já que a peça nova só vem no ano que vem, me falou Creusa. Creusa que não tem luxo, que começou a trabalhar com 9 anos e que tem usado as férias do emprego, para ajudar a mãe de sua patroa nos cuidados da casa, de outra casa. Digo o óbvio, “é cansativo, né?” e ela responde com um sorriso tímido. “É, mas eu sou pai e mãe”.
Hoje não me esforço mais para lembrar do seu sorriso, hoje ela olhou para mim, de frente. Pude ver, então, os dente amarelos em cacos, espaçados. Os olhos pequenos e puxados que quase se fecharam quando suas mãos tocaram meu joelho. Pude ver a garra no seu rosto magro quando me disse que guarda o seu nome com todas as forças que tem. Respondi com euforia, que o que levamos desta vida é o que a gente é na vida. Concordamos.
Dei o sinal e ela me disse: “conheci uma menina muito legal”, olhei no fundo dos seus olhos, sorri. Antes de desçer, uma ideia. "Existem coisas na vida que se precisassem de razão, perderiam todo o sentido..." Em pé, já na porta, olhei para Creusa, ela mexia discretamente as mãos e fitava algo além da janela. Estava longe, pensava.
Por Natália Oliveira

sábado, 19 de dezembro de 2009

Ao meu motivo, sua breve história

Eu pedi emprestado, depois de ter ensaiado mentalmente. A distância entre um ponto e outro me ajudou na organização das palavras. Pensei, até, em conversar com o fiscal antes, mas ele estava rodeado de gente e por um receio maquiado de bloqueio me contive. Parei na fila já formada em frente a placa que dizia Vila Natal e pedi pra primeira moça. “Será que você tem 55 centavos?” Era baixa, cabelos pretos, pele manchada. Me encarou desconfiada. Expliquei. “Trabalho aqui perto”. Ela disse que passaria o cartão, lhe estendi as moedas que tinha. Disse que não liberaria duas passagens, era de empresa. Lamentei. E ela completou o valor.
Duas semanas depois, passei a catraca de um outro ônibus, que peguei no mesmo lugar. Desta vez não voltava, mas ia ao trabalho. Existiam vários bancos desocupados, mas escolhi o que aquela senhora sentava. A conhecia de outra viagem, de vista. Alta, tinha os cabelos crespos ralos e presos, era muito magra, tanto que os ossos marcavam. Tinha na pele um tom negro desbotado, sem cor. Pela fragilidade aparente ou por qualquer outro motivo inexplicável desejava uma conversa com ela. Ainda assim, sabia que o tempo era curto e que o assunto faltava. Seguimos viagem, eu com os meus pensamentos, ela não sei. Pude perceber apenas que mexia com as mãos discretamente, como se quisesse passar o tempo, seus dedos eram grandes e finos.
Alguém deu sinal, o ônibus parou e como de costume lancei um olhar aos recém-chegados. Entre eles, uma mulher baixa, cabelos pretos, pele manchada, conhecida. Esperei que sentasse perto de mim, procurei por minha carteira dentro da bolsa e agradeci por não ter gasto os últimos trocados na banca de doce. Arrumei a cédula na mão e virando o corpo para trás agradeci. “Você me emprestou uma condução um dia, que bom te ver, poder devolver.” Ela me disse não lembrar, a ajudei. Recusou então, eu insisti até aceitar, ouvi uma história sobre um empréstimo semelhante que havia feito e virei pra frente, assim como antes. Lá estava a mulher, ao meu lado.
Não demoraria a chegar, caso não tivesse trânsito. O motorista era ágil e parecia ter pressa, foi sobre isto que trocamos as primeiras palavras. Entre elas e as tantas outras um espaço de minutos. Respondia minhas perguntas como se eu já soubesse de sua história, deixando sempre o mais importante com detalhes. “Creusa.” Tem três filhos e um relógio que a desperta todos os dias às cinco da manhã. Depois de arrumá-los pra escola embarca no primeiro de três ônibus que a levam ao emprego, onde entra às 11h00. A saída da casa de família é às 17h00 da tarde, mas só chega em sua casa às 23h00 da noite. Não me disse se aceita ou recusa a oferta da patroa. “Ela sempre diz pra eu pegar alguma coisa, pq. fico muito tempo no ônibus”. Sei apenas que a minha aceitou, quando perguntei se gostava de maçãs.
Antes de descer, pude ver os seus olhos, quase de frente, eram grandes e redondos, desenhados por sobrancelhas finas e ralas. Vestia uma blusa vermelha gasta e mexia as mãos discretamente. Apertei o sinal e levantei, desci, mas não antes de me despedir e contemplar algo que ainda me esforço pra lembrar: seu sorriso.
...por qualquer outro motivo inexplicável desejei uma conversa com ela. E quando a tive preferi a sua história ao meu motivo.
Por Natália Oliveira

domingo, 13 de dezembro de 2009

For All

Tava vazio. Sentei num dos primeiros bancos depois de passar a catraca. Era banco preferencial, mas não tinha ninguém apto a usá-lo ali. Arrumei a bolsa no colo e procurei por um pacote de bolacha que não lembro de ter terminado. Não achei. Alimentei a ansiedade com alguns pensamentos sobre a noite, já passava das dez e eu não procurava por carona, como de costume, tinha tido coragem, enfrentava, sozinha, o medo dos noticiários. Me sinto mais viva quando consigo olhar pra cidade de perto, estava feliz por isto.
Não lia, apenas esperava e me entregava as cenas do dia, nas paradas lançava olhares aos recém-chegados. Algumas antes do meu destino, ela entrou. Vestia uma calça bege clara, uma bota preta de bico e salto finos, uma blusa decotada na mesma cor. Percorreu o caminho curto, entre a porta e o cobrador, em passos desequilibrados, bambeados e por um momento a julguei embriagada. Passou a catraca, mediu e encarou o homem que dormia encostado na janela. Subiu os degraus internos do transporte e em seguida deixou seus pés voltarem ao chão. Seu celular tocava e com uma expressa dificuldade atendeu.
Tinha os cabelos loiros tingidos, enrolados, curtos. Magra. Estava acompanhada por uma da mesma idade, só que mais encorpada, cabelos avermelhados, blusa florida, colo a mostra. Sentaram juntas, atrás de mim. Na minha frente, um acrílico que refletia mal o rosto da primeira. Desde então, participei da conversa, como ouvinte, distante. Falavam sobre a ligação recebida a pouco. A dona do celular dispensava palavras em voz alta e olhava constantemente para o lado oposto, como quem procura por público. A franja tampava parte de seus olhos pintados de preto, os fios estavam molhados.
O assunto era cada vez mais animado. “Ai eu falei pra ele, você só pode ser um anjo. Ai ele respondeu: ‘você tá dizendo que eu sou um anjo?’ é, no meio desta homarada feia aparece você, bonito, cheiroso.” “É tão gostoso homem cheiroso, né?”. “É. Com certeza. Eu namorei com um menino que tinha o cabelo arrepiadinho – ela fazia gestos com a mão para ilustrar – cheiroso, magrinho, uma delícia”. “Ai, homem magro é tudo. Eu adoro”. Antes de descer, pude ouvi-las mais um pouco. “Ele ficou me olhando e eu nem ai. Ai depois de um tempo ele chegou e a gente dançou, quando acabou ele disse: “Valeu. Você dança bem e eu: ‘aé?’. “Tá certo deu uma de joão sem braço, né?”.
Antes de me encontrar com a calçada, uma última imagem, tinham rugas nos olhos e, agora, trocavam receitas sobre pele flácida. Comigo, chutei uma idade. Nada, mas certamente eram mais velhas que minha mãe. Mas eu não me importava, em busca da minha cama, só pensava em minha casa.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Amiga de Mim

Eu tenho amigos quarentões que se divertem com bolas de chiclete e comem coxas de frango com a mão. Às vezes tem as mesmas aflições que eu, às vezes queixas infantis, por mim superadas a tempo. Tenho amigos mais novos que me ensinam coisas que demorei anos para entender e que me trazem a maturidade esquecida em alguns cantos da sociedade. Tenho amigos com a mesma idade que não aparentam a idade, outros nascidos a pouco tempo que já mostram linhas de maturidade.
Eu tenho amigos que mais brigo, outros que mais brinco, outros que mais converso. Tenho amigos de conversas fúteis, outros de profundas e filosóficas e outros que são tudo, tudo que preciso e que dispenso. São completos. Alguns moram longe, mas mesmo assim os vejo com frequência, alguns de tão perto escapam dos horários, dos combinados. São amigos corridos, de horários, de tratos. São amigos que podem marcar e desmarcar quantas vezes precisarem, são suficiente amigos para isto, no final das contas a gente sempre entende. Aliás, às vezes sou eu que escapo.
Eu tenho percebido que tenho amigos de todos os tipos, é tanta variedade que nunca me falta um sorriso, um abrigo, um abraço. Mas ando em busca de alguém diferente de todos os conhecidos, alguém confidente, alguém mais presente, alguém mais eu. Uma amiga que me veja com menos olhos acusadores, com menos manuais, menos cobrança, menos relatórios de desempenho. Amiga para ouvir os meus erros, amiga para enxugar as minhas lágrimas, amiga para me deixar descansar, quando eu só pedir isto. Amiga. É isto que me falta, é isto que me desejo, é isto que prometo pra mim. Ser mais amiga de mim.
Só me falta uma coisa no meu grupo de amigos, contar com a minha amizade pra mim, contar com a minha paciência pra mim, ser a cópia do que os meus amigos são pra mim incorporado no que eu sou, mas desta vez de eu pra mim. Só me falta um sorriso, um abrigo, um abraço meu, de eu para mim. Só me falta a compreensão, o colo, o conselho, mas principalmente, a cumplicidade, mas desta vez, de eu pra mim. A partir de hoje, mais amiga de mim.
Por Natália Oliveira