quarta-feira, 30 de junho de 2010

Pérola Negra

Desci do ônibus e você tava lá, sentado. Mas antes mesmo do motorista abrir a porta já te via, você não, ainda. Me aproximei e perguntei de você a você, sua resposta foi linda como a outra, um sorriso aberto de afastar os dentes, todos marrons. Sem palavras você esticou o braço, fui ao seu encontro e ganhei um presente estalado, gostoso. Estiquei as costas, mas você me chamou de novo, curvei o tronco e com leveza você juntou o meu rosto ao de sua “mama”. Ela abriu os lábios num sorriso, faltava um dente, mas era incrivelmente bonito, como o seu. Sorrimos os três. Atravessei a rua e antes de me entregar a corrida de atraso, olhei para o lado, você abria os braços pedia um abraço.
Certa vez ouvi dizer que a vida é um mosaíco, gosto da ideia e busco organizar as minhas peças. Algumas encontro em mim, outras em minha família, outras nos meus amigos, mas há aquelas que exigem mergulho e disposição para encontrá-las, não são vistas diariamente, é preciso treino, desprendimento. Ainda assim, viver sem elas é como pegar uma concha e se perder em suas cores, sem ao menos notar a beleza da pérola.
Por Natália Oliveira

terça-feira, 29 de junho de 2010

Flaques d'eau Noire

....Há alguns dias numa churrascaria conversava com uma amiga sobre o meu mal em geografia...
O ombro dela batia em meu cotovelo. Parecia um bibelô. Olhos vivos e pequeninos, nariz fino e lábios grossos, tudo pintado de marrom. Nos cabelos crespos, caprichosamente penteados para trás, uma tiara branca. Desci do ônibus e parei ao seu lado. Ela se virou e, olhando para a camisa do Brasil que eu vestia, perguntou o resultado do jogo. “3 a 0”. Num sorriso juntou as mãos roliças, olhou para cima e disse que até orava para Deus ajudar no jogo.“Pq. a gente se esforça, mas Deus dá uma forçinha, né?”.
Das perguntas que fiz, só respondeu que trabalhava em casa de família e que lá ninguém parava para ver partida. Depois se concentrou em me contar a história de sua vizinha e a luta para conseguir emprego. “Ela não tinha faculdade, se sentia burra, mas era esforçada, sabe?” Sei, pensei. “Ai ela queria muito entrar numa empresa e os outros candidatos tinham muito mais preparo, só que ela era esforçada e acabou conseguindo.”.
Contava sem olhar para o meu rosto, mas às vezes, de repente, olhava fixamente em meus olhos, franzia um pouco a testa e com um ar de estranheza silenciava. Algo de pueril transbordava naquelas pequeninas poças negras, eu mergulhava. Do assunto da amiga, me falou do seu companheiro. Daquele que ela pede para dar uma força para a seleção ganhar. Recitou de cabeça algumas palavras Dele e me deixou o Salmo 112 para desfrutar.
Entre um letreiro e outro, apareceu o meu destino. O ônibus parou além do ponto e as pessoas subiram ligeiras. Antes de deixá-la, perguntei seu nome. “França e o seu?”. “Natália”. Numa nítida surpresa ela sorriu com empolgação. “Minha filha adora este nome”, disse e acompanhou meu caminho em busca do ônibus, que já se preparava para sair. Deixei França ali, em Santo Amaro. Cheguei em casa, abri a bíblia, li o salmo, fechei o livro com um sorriso, fazia graça. Geografia de pele morena, poças negras e ar sereno, ali, do meu lado, entre a rua e a calçada... e eu todo este tempo em busca de mapas...
Por Natália Oliveira

sábado, 26 de junho de 2010

Damas primeiro

O motorista parou um pouco antes do ponto, já que, como de costume, as pessoas não o deixaram avançar. Mesmo com as poltronas cheias, tinham pressa. Nunca entendi isto, subiam às cotoveladas e aos empurrões e no fim paravam juntas em pé. Se fossem um pouco mais serenas não somariam roxos e nem dores colaterais, mas povo brasileiro é povo da luta, né?
O ponto esvaziou quando da esquina o letreiro do Jardim Selma apareceu laranja. Um lago de cabeças se formou na porta, antes mesmo dela abrir. Com alguma distância, eu e uma amiga assistimos saltos, tênis, sapatos sociais e sandálias sumirem escada a fora. Ao ponto que subiam cheios de pressa, um homem se esquivava do desespero alheio com movimentos curtos para trás.
O lago deságuo logo e num movimento mútuo nos aproximamos da porta, eu, ela, ele. Num gesto de cabeça, ela pediu que ele entrasse primeiro, o homem tinha as pernas duras, esticadas, mortas. Ele então esticou o braço, largando parcialmente uma das muletas, fez um gesto para o lado, cortando o ar, e com um sorriso de dentes separados disse “as damas primeiro”.
...Deficiência é a corrente frágil que aprisiona o coração, mas o cavalheiro valente encontrou a gentileza quase rara e mudou minha visão
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Logo

Tarde de inverno com cara de outono. Temperatura regulada a mão, nem quente, nem frio, morno. Sexta-feira, hora de ir embora, no ponto. Feliz pelo clima e pela bendita hora: em qualquer momento ou situação, sempre apaixonada por fim de tarde.
Esperava pelo ônibus quando ele chegou, não notei sua presença. Fitava os carros que subiam depois de virar a esquina, sempre velozes, sempre com pressa. Distraída, levei um susto quando de repente puxou a alça da minha bolsa.
Há alguns dias, luto com os meus pensamentos. Tanto noticiário, tem hora que a cabeça dá um nó. É muito desespero alheio. Sei não, às vezes até penso que o mundo acaba em água, mas nem sempre, às vezes me aciono, me converso, me acalmo.
Distraída, levei um susto, olhei rápido por cima do ombro, ninguém. A bolsa continuava no mesmo lugar. Já calma, olhei para o lado oposto, ele, com auxílio das mãozinhas atrofiadas, se preparava para sentar.
Me aproximei. Tinha os olhos puxados e um rostinho da turma que carrega cromossomo a mais. “Você chegou e eu nem te vi, né?” Sem palavras, esticou o braço em minha direção, cheguei mais perto, encurvei o corpo e deixei que seus dedos bagunçassem meu cabelo. Em sons me fez um pedido, virei o rosto, ganhei um beijo. Retribui e ele sorriu um sorriso bonito, de boca aberta, destes de afastar os dentes.
“Você tá passeando?”, ele sorriu de novo, esticou o braço e apontou uma senhora de cabelos crespos, presos, encostada numa estrutura de metal. “Mama, mama”. Virei o rosto, nossos olhares se encontraram, ela sorriu tímida. Em silêncio agradeci por me compartilhar seu presente.
Logo se levantou, logo foi embora, logo senti saudade.
Por Natália Oliveira

Surdez

Surdez consciente é a pior coisa que existe, porque cala o coração alheio na marra.

Surdez afiada machuca, porque obriga a esperar uma vez que não vem, não vem.

Por Natália Oliveira

domingo, 20 de junho de 2010

Diá rio

A noite estava fria, mas quando a encontrei ainda não chovia. Estava de branco e apesar do frio vestia blusa sem mangas. A regata trazia uma data, destas roupas que compramos perto do ano novo, só não consigo me lembrar o ano. As pernas tinham a mesma cor do resto do corpo, um branco quase amarelo, típico de quem não vê o sol há tempos. Sem destaque algum, usava um shorts de tecido fino, justo e curto que puxado marcava a intimidade.
Era domingo, mais de dez. Passávamos por lá por pura diversão. Numa travessa bem iluminada, estava sozinha com fones no ouvido. Decidimos aproveitar. Quando paramos o carro ao seu lado, encurvou o corpo em direção à janela aberta, os cabelos negros, visivelmente alisados do meio para baixo, acompanharam o movimento e foram levados num gesto lento para atrás da orelha. No topo da cabeça os fios sem química cresciam livres, deixando um armado inevitável.
À primeira pergunta respondeu sem constrangimento. “É R$50”. À proposta seguinte respondeu tímida, num sorriso largo. “Não, eu tenho vergonha. Muita gente! Vocês têm mulheres lindas ai com vocês. Vou não, vou não”. Para falar a verdade, nem a gente ia, passávamos por lá por pura diversão. Aceitamos a negativa como uma forma de sair, mas não antes de saber que morava em Jundiaí, sozinha. No trabalho até 00h00 e nem sempre por ali. Foi com a mesma alegria que perguntou e soube de nós também.A despedida foi marcada por lembranças de Deus. “Fica com ele, você também”.
Nela existia uma doçura acentuada, ainda não perdida pelo amargo do asfalto. Algo que motivava um desejo de cuidar, de sentar à mesa pra comer e conversar. Algo diferente no rosto miúdo, olhos puxados em tons claros. Diferente. Passamos por mais algumas ruas, comentamos o encontro e desde então pensei nela alguma vezes. Onde estaria neste momento? Penso. É dia. Se pudesse ser herói certamente tiraria desconhecidos do corpo dela e traria a sua boca o gosto do dia.
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Alimenta de que?

Vestia um uniforme azul marinho. O nome da empresa vinha num branco discreto no peito, lado direito. Era igual a todos os outros da equipe de limpeza, gola em v, mangas curtas, botões na frente. Ele, porém, nunca tinha visto ali. Ou melhor, nem ali, nem nos corredores, na saída ou entrada de banheiros, no pátio. Nosso primeiro encontro acontecia naquele momento, no refeitório.
Diferente dos outros dias, todas as mesas estavam ocupadas. A máquina de refrigerante exigia paciência e uma fila extensa separava os recém-chegados da prateleira com bandejas, pratos e talheres. A bancada com o cardápio, construída no centro do salão, estava repleta de pessoas dos dois lados. Enquanto se serviam, dois homens brincavam com a quantidade de comida que um deles colocava no prato. “Tô em fase de crescimento”.
Em toda a extensão do local, indecisos andavam de um lado a outro e acabavam por parar nas filas do fundo, onde serviam opções mais lights e gordurosas. A mulher de cabelos pretos, rebeldes e com luzes passava pelas minhas costas e lamentava a escolha do horário. “Devia ter descido mais tarde”.
A fila andou e dei espaço para o próximo pegar salada. Os tomates estavam vermelhos e a rúcula verdinha. Esperava pelo arroz quando alguém atrás de mim falou alto. “Hei, isto não é sopa!”. Foi a primeira vez que o vi. Estava parado, estático. As pessoas o olhavam. Ele segurava uma cumbuca de porcelana e nela tinha molho de salada. Tomado de vergonha o homem contorceu os lábios, deixando à mostra os dentes mal cuidados. Vestia um uniforme azul, igual a todos da limpeza.
O refeitório estava cheio. Num gesto de nítido desespero levantou a porcelana da bandeja e sem saber o que fazer retornou-a no mesmo lugar. Percebendo o movimento, uma das atendentes recolheu a louça e pediu para que ele pegasse uma outra, limpa. Ele foi, eu sai em busca de uma mesa. Sentada o vi passar com o prato vazio, depois de alguns instantes. Olhei para os seus olhos numa tentativa de lhe dar conforto, ele só olhava para frente, parecia com pressa.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Pérola Negra

Desci do ônibus e você tava lá, sentado. Mas antes mesmo do motorista abrir a porta já te via, você não, ainda. Me aproximei e perguntei de você a você, sua resposta foi linda como a outra, um sorriso aberto de afastar os dentes, todos marrons. Sem palavras você esticou o braço, fui ao seu encontro e ganhei um presente estalado, gostoso. Estiquei as costas, mas você me chamou de novo, curvei o tronco e com leveza você juntou o meu rosto ao de sua “mama”. Ela abriu os lábios num sorriso, faltava um dente, mas era incrivelmente bonito, como o seu. Sorrimos os três. Atravessei a rua e antes de me entregar a corrida de atraso, olhei para o lado, você abria os braços pedia um abraço.

Certa vez ouvi dizer que a vida é um mosaíco, gosto da ideia e busco organizar as minhas peças. Algumas encontro em mim, outras em minha família, outras nos meus amigos, mas há aquelas que exigem mergulho e disposição para encontrá-las, não são vistas diariamente, é preciso treino, desprendimento. Ainda assim, viver sem elas é como pegar uma concha e se perder em suas cores, sem ao menos notar a beleza da pérola.

Por Natália Oliveira