sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Só crianças crescidas

Eu comia chiclete do chão, escorregava de bunda no barro e me perdia em latas de leite condensado. Detestava vestidos e qualquer coisa que me impedisse de subir em árvores. Me confundia quando me chamavam de sorriso e não de Natália.
Tinha pânico de matemática. Não gostava dos números, das expressões, das divisões. Certa de que precisaria deles para fugir das broncas paternas, passava tardes e tardes comendo chocolate em pó debruçada em livros. Com o tempo decidi que saberia o suficiente para conferir o troco da padaria. Nada foi como planejei.
Encontro hoje números em tudo. Dizem sobre dias de vida, sobre calorias, afirmam jovens e velhos. Separam. Números no relógio, números de beijos no rosto, números de desculpas, números de perdão, números de tentativas. Números limitam!
Em lousas eles existem, quase sempre. Mas ontem ela estava tampada por um branco criativo. Na sala palavras, pirulitos e chocolates. E depois de tanto tempo, esqueci do tempo, dos números e do troco da padaria. Descobri momentos de alegria, com algumas crianças crescidas.
Por Natália Oliveira

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Nada Passageiro

Estava cheio. Ainda assim avistei um lugar vago no fundo. Sentei e, como de costume, me perdi em linhas impressas, escritas. Um metro me separava de costas queimadas, blusa branca regata, sorriso com dentes brigados e escassos. Boné. Cabelo preto sem forma amarrado num laço frouxo, mãos com unhas grandes, pintadas de um esmalte, visivelmente, velho, descascado. Apoiada na barra de segurança próxima a porta, estava. Segurava entre os pés uma cesta cheia de balas. A percebi em um olhar rápido atravessado por uma divisória de plástico transparente.
Vestia uma calça jeans azul e um olhar perdido. Não sei por onde andavam os seus pensamentos , mas sei que voltaram ao ônibus no mesmo momento que os meus. Negro, cabeça raspada. Calça de moletom, camisa. Nas mãos uma caixa de papelão cheias de doces, na cintura uma bolsinha preta discreta. Na boca um grito em forma de pergunta: “tá vendendo aqui?” O corpo da mulher se virou e eu percebi seus olhos pequenos e pretos num rosto notavelmente constrangido. “Não. pode vender.” “Mas já vendeu?”. Não eu sabia, “não” ela respondeu. “Então daqui que eu vendo para você.”
O homem assumiu o lugar perto da catraca e descreveu os produtos que levava com tamanha vontade de vendê-los. Falava das “balas de coco feitas de leite-condensado, embaladas manualmente da amiga aqui...”. Enquanto isto, a mulher sentava em uma das poltronas recém-desocupadas. Inquieta, dizia a senhora de corpo gordo, cabelos alaranjados e roupa chamativa que “não tinha coragem de vender no ônibus. Tinha vergonha.” A outra por sua vez dizia a ela algumas palavras de incentivo. “Você não pode ter receio, está trabalhando.” Momentos depois, o negro voltou com as mãos cheias de moedas. Entregou-as a mulher e desceu.
A viagem continuou, cheia de curvas e pedidos. Os passageiros da frente pediram mais dez balas
, os de trás mais dois reais. A cada mergulho nas embalagens, uma promessa. “Eu vou vender no ônibus. Não preciso ter vergonha, né?” perguntava à senhora. “Sabe o que eu vou fazer? Vou comprar uns saquinhos, colocar as balinhas. Ai eu amarro umas fitinhas e vendo, né?”. A senhora concordava e a cada mastigada pedia mais duas, três. “Ou melhor dá umas dez para eu levar pros meus filhos”. Quando desci do ônibus a mulher prometia que venderia no ônibus, em frente ao metrô. Falava com euforia e mal percebia que a cesta estava quase vazia.
“A única maneira de eternizar a minha vida é investir na sua vida.”
Por Natália Oliveira

sábado, 19 de setembro de 2009

A grife é você

Eu entrei no mundo que o passaporte é o sorriso. Onde nem precisa RG, onde o único dever é ser você. Lá o brilho do sol, é o brilho do rosto que vem da garganta, de dentro. Onde ninguém mata ou pede tempo.
Lá a menina de roda pode andar, a senhora gordinha modelar e o cabelo crespo molhar. É onde o cego enxerga o coração, o surdo é maestro e o mudo sabe falar de tudo. É o lugar que o violão toca sem parar e o menino se permite dançar.
Não existem escolas, mas existem escolhas e lá todo mundo decidiu ser livre de si. As pessoas se doam, se entregam e se cuidam e é incrível como ninguém fica sem cuidado. É todo mundo bem olhado.
Elas se juntam nas praças e se abraçam em milhares de braços. Jogam baralhos, gargalham e trabalham muito menos que nós. Elas plantam, colhem e comem por fome, só. Não sustentam vícios, dizem que ser feliz, é ser assim.
Lá não tem moda. A grife é viver do simples, é brincar com a vida e tudo que precisa existir para dar sentido não vale. Lá é diferente daqui. Lá se pula da cama, se aceita, se topa. Lá lambuza com morango, com conversas, com elogios, com água de cachoeira.
Lá não estuda até ficar velhinho, mesmo sem saber o que quer ser. Lá ninguém diz o que tem que fazer. Lá o único dever é ser você. Eu passei por lá e agora conto para você. E se não puder viajar, eu invisto em você!
“Vida eterna é aquela que não acaba com a morte”
Ps: Baseado em ilusões reais.
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A gente se cuida

Em meio às desculpas e licenças alcanço uma poltrona no final do ônibus. Com uma mão guardo meu bilhete único recém-vazio, com a outra surge Fiódor Dostoiévski e Memórias da Casa dos Mortos. O livro é atraente e cheio de mistérios, antes de abri-lo, guardo as moedas que garantirão minha passagem no final da tarde. Me entrego à história.
Ao longe, de quando em quando um apito surdo avisa a parada. As pessoas sobem, descem, conversam, gargalham e reclamam, eu leio. Concentrada na Festa de Natal dos presos, não percebo a entrada do homem de sua sacola. “Atenção senhores passageiros”, ele grita. Finjo não perceber, mas ele continua. “Fui drogado. Ninguém acreditava em mim, mas a PROLIB apostou em minha vida”. Continuo olhar o livro sem me atentar a uma única palavra.
“Hoje estou curado, hoje cuido de outros viciados, hoje trago a vocês uma cartão que não tem valor. Você podem pagar o que quiserem por ele”. Fechei o livro. “O dinheiro será revertido para salvar vidas” Afundei os dedos no bolso e, sem pensar muito, levei às mãos dele, as minhas últimas moedas.
Horas mais tarde sai do trabalho. Um leve desespero tomou conta do meu peito, a falta de dinheiro. Ainda assim, dei sinal. Atravessei o curto corredor e a catraca me barrou. Afastei na inútil tentativa de saber o que fazer. Ao longe, de quando em quando um apito surdo avisava a parada. Mal pude ouvir quando disseram.“Vem moça, eu passo para você, você tá perdoada!”.
Vamos montar um mundo que você cuida dele e eu cuido de você. Se você acreditar que é possível eu posso confiar em você.
Por Natália Oliveira

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Bora conversar?

A maquiagem já sabe o tom da bochecha e o cabelo promete se comportar. Os meus pés sabem por onde caminhar e o frio na barriga não demora a pintar. A energia garante a descida pelas escadas curtas e o sol já vem me esquentar.
É assim quase toda sexta-feira, quase toda para acabar. O ambiente muda em segundos, não demoro a me achar em meio aos estúdios, é em um deles que vou gravar. O cenário é pintado de azul, o meu convidado de branco e camarelo. Para iluminar ainda mais o nosso sorriso, as luzes se põe a ligar.
E eu já sei que é hora de gravar. Não demora muito a acabar, papo bom de gente grande não tarda a passar. Mas eu aprendi que tudo nesta vida é pessoal, inclusive o Marketing, que não é nada mal. E para você que não viu, assiste o Canal Universitário, que a gente passa lá! É só se informar.

À minha amiga e companheira de trabalho, Rosângela Cianci.

Ps: Todas as sextas-feiras, às 15h00, ao vivo, no canal universitário - 11 da Net e 71/187 da TVA.

Por Natália Oliveira

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Falávamos de?

“Enquanto eu viver continuarei procurando o sentido da vida.” Já vi esta frase em mais lugares do que gostaria. E já tentei conversar com o autor em mais sonhos do que noites bem dormidas. E ainda a encontro na minha musculatura, no meu dia-a-dia.
A verdade é que a vida não tem o menor sentido mesmo. Investimos a maior parte do nosso tempo estudando e no final das contas até que conseguimos alguma coisa. Somos graduados em marketing pessoal, pós-graduados em etiqueta, mestres em bons negócios e doutores em equilíbrio de crises financeiras, mas quando o assunto é felicidade, autênticos analfabetos.
Conseguimos memorizar todos os talheres, mas não sabemos como comer uma coxa de frango com a mão. Fazemos planejamentos estratégicos, mas nos perdemos quando o assunto é idealizar um final de semana divertido com os amigos. Alcançamos posições de status, mas não somos modelos para as crianças mais sedentas de heróis. Apresentamos soluções para a economia mais complexa, mas somos incapazes de lidar com o dia-a-dia que só pede simplicidade.
Somos poliglotas, mas não há quem nos faça entender a língua dos idosos. Vivemos no exterior, mas mal conhecemos o nosso interior, não sabemos rir das nossas viagens. Nos entregamos para toda a informação do mundo, mas somos indiferentes aos fatos familiares. Especialistas em leitura dinâmica, mas leigos nos sinais do amor. Encontramos alternativas para o sucesso, mas não evitamos o fracasso de uma vida mal vivida.
Temos artifícios para sermos considerados super inteligentes, mas nenhum para sermos considerados sábios.
E quer saber? A vida não tem o menor sentido mesmo. E já como não há tempo de voltar e já como ciclo não há de parar “desce um suco de laranja e uma porção meia arrependimento e meia esquecimento.” Do que falávamos, mesmo?
Por Natália Oliveira