sábado, 10 de julho de 2010

A Carta

Fui ao centro de São Paulo a procura de um documento. Minha missão era clara: descer no ponto certo, achar o prédio do Sindicato e voltar para casa com a carta, sem me perder. Era tarde de outono, sexta-feira, o tempo estava fresco e o céu azul. Sai do escuro do metrô e o sol me recebeu. Encontrei a rua do mesmo jeito que estava, meses atrás, na última visita. A barraquinha de filmes no mesmo lugar, a banca de jornais na calçada e as cadeiras de plástico no bar ao lado. Tudo nos conformes.
Andei em direção a praça próxima enquanto me perguntava “reto ou esquina?”. As pessoas passavam apressadas, o vendedor de comida ensinava roteiro e uma música alta rolava. E eu tentava de todas as formas acionar a memória. Sai sem endereço. Sem nome de rua. Não dava nem para perguntar. Tinha horário, arrisquei alguns passos. Parei diante da construção amarela da igreja, “contorno ela ou não?”. A música, antes fundida com outros barulhos, se mostrava mais clara, agora. Sons de instrumentos um sobrepondo o outro, nada convencional. Diferente. De onde vinha?
Mexi o corpo a procura. Meus olhos encontraram um tapete marrom claro, feito de couro, estendido no chão, ali perto. Uma mulher de cabelos longos e pretos repousava as pernas cruzadas ao lado de um radinho a pilha. Os fios trançados ostentavam penas coloridas. Ao seu lado, um homem de pele dourada balançava pernas e braços, o vento batia no cocar enquanto ele dançava. Dançava sem parar. Quando a música já estava no fim, sem cessar os movimentos ele pedia à índia, ela voltada. Ninguém assistia ao espetáculo.
A tarde já tinha caído quando sai do prédio com o envelope. Talvez tenha sido isto, o azul marinho do céu me confundiu. Atravessei as avenidas paralelas embaixo do viaduto e continuei em busca do metrô. Demorei um pouco para perceber que estava perdida e mais ainda para encontrar alguém que soubesse me dizer por onde deveria ir.
Caminhei tudo de novo, sentido contrário. Não tinha quase ninguém mais na rua, os comércios estavam com as portas semi-abertas ou já fechadas. Na calçada torcia pelo vermelho do semáforo, quando o vi chegar. Vinha com os carros, mas vinha devagar, sem pressa. Olhei para o seu rosto de anos a mais e ouvi o seu convite. “Vamos casar?”. Não respondi nada ao cavalheiro, silenciosa segui, ele fez o mesmo. Cavalheiro sem cavalo, mas com uma carroça e bastante coisa dentro, até.
Depois de tanto, consegui chegar ao metrô. Entrei e sai depois de uma hora. O cenário era o mesmo, barraquinha, banca, cadeiras de plástico. Horário de pico, impossível entrar nos vagões. Esperei o quanto pude, mas não deu mais. O limite foi uma discussão entre dois senhores, brigavam porque um acusava o outro de empurrar. A verdade é que era cotovelo e atropelo para todos os lados, impossível achar o responsável. Vou de ônibus.
Insisti bastante até encontrar alguém que soubesse. Ela. Desviava de pessoas sentadas em volta de mesas regadas a cerveja e segurava a bolsa com força. Parou desconfiada quando a abordei. Expliquei que eu devia procurar por um ponto ao lado de um Bradesco, mas não sabia como chegar lá. Em resposta, ela me olhou nos olhos e me explicou pausadamente para que eu entendesse. Agradeci e então ela se aproximou um pouco mais e me suplicou cuidado, “lá é perigoso, tá?”. Algo de maternal transbordava naquele pedido.
Cheguei ao ponto e recorri ao homem de camisa pólo e ar descansado. Contei minha aventura no centro, “me perdi pelas ruas, meus planos de voltar para casa de metrô não deram certo e agora preciso de um ônibus, que eu não sei qual é”. Por sorte ele sabia. Agradeci. Permanecemos em silêncio até que ele pediu para que eu não ficasse chateada por me perder em São Paulo, afinal de contas “quem não é daqui, estranha mesmo, é normal”. Não sei se minha expressão denunciava algo não sentido, mas ele pareceu se preocupar. Logo o letreiro luminoso deu vida ao meu destino, dei sinal e antes de subir ele me lembrou o caminho. “Não esquece”.
Minha missão era clara: descer no ponto certo, achar o prédio do Sindicato e voltar para casa com a carta, sem me perder. De tudo, passei pela selva, abandonei meu noivo, conheci candidatos a mãe e irmão e ainda voltei com a carta.
Por Natália Oliveira

4 comentários:

Rose Cianci disse...

"...Demorei um pouco para perceber que estava perdida e mais ainda para encontrar alguém que soubesse me dizer por onde deveria ir...". Menina, que apuro, heim? Até imagino você, olhando de um lado para o outro, passando pelas figuras curiosas que encontrou - rs. Ainda bem que você chegou - sã e salva, né?
Bjus.

Pensamento aqui é Documento disse...

Rs.
Foi um apuro. Um apuro delicioso, eu diria. Se não fosse o perder, não teria o ganhar, né?
=D

Beijos!

=D

Daniel Savio disse...

Sabe, viver numa cidade grande acaba gerando esta confusão de se perder...

Mas o mais importante é não perdemos de nós mesmos.

Fique com Deus, menina Natália Oliveira.
Um abraço.

Pensamento aqui é Documento disse...

Acho bom morar em cidade grande também por isto. Todo dia, quase sempre uma novidade. Em paz, mesmo em meio a perda, um ganho intenso, infinito!