sexta-feira, 27 de março de 2009

Rosas pelo caminho

Em tempos conturbados, é difícil acreditar na bondade verdadeira. Depois de algum tempo, ela decidiu comemorar os aniversários dos funcionários. A decisão das celebrações veio em uma reunião, costumeira, de segunda-feira. Puro propósito ou mera coincidência, faltava alguns poucos dias para o aniversário dela. Enfim. Os dias passaram, as tarefas não, mas mesmo assim tivemos que adiá-las para atravessar o corredor, no meu caso, subir as escadas, em outros, e seguir sentido auditório. Ficamos lá, gritando para pedir silêncio, logo ela subiria motivada por alguma desculpa. Não demorou muito para encontrar a sala no maior alvoroço. Já que não tinha outro jeito, começou a festa improvisada. Primeiro ela. Leitura de frases tocantes, poemas bonitos, entregas de anéis brilhantes. Depois, os aniversariantes do trimestre, entre eles, eu. Ficamos lá, os mais ou menos quinze, ao lado dela. Enquanto o “nessa data querida” tava na boca do povo, a funcionária de saia comprida e blusa de seda vermelha entregava algumas rosas. Entre todas as cores disponíveis, escolhi a amarela. Gosto dessa cor. Nos minutos seguintes, não seguiram mais palmas e nem abraços. Mesmo assim, as pessoas demoraram a acreditar que não tinha bolo, nem brigadeiro. Para que refrigerante, então? Saímos. Voltei para minha sala. Antes de ligar o computador li a frase que haviam colocado no mural. Interessante, mexeu comigo. Procurei alguns sites de trabalho voluntário, queria fazer algo que me permitisse mudar parte do mundo. No momento seguinte, cortei o caule da flor para que coubesse no copo e a deixei sugar a água. Fiz mais algumas tarefas e observei os minutos se arrastaram até o relógio marcar 17h00. Ufa! Peguei minha bolsa e enfiei a rosa dentro, deixando as folhas e as pétalas para fora, coloquei o meu bilhete único no bolso e cheguei ao ponto. Lotação Santo Amaro. Sinal. Entrei e cinco minutos depois que sentei no banco preferencial, dei lugar à senhora de corpo esbelto, que trazia o rosto sofrido, sacolas e uma criança, já crescida. Alguns passos para o fundo do carro e pronto. Achei um lugar para esperar outra poltrona. Estiquei meu braço direito para segurar na barra superior. O homem, que estava abaixo do meu cotovelo, ofereceu colo para as minhas coisas. A voz dele quase não saiu, parecia algum problema. Entreguei. Estava cansada. Deitei meu rosto no braço esticado, de forma que os meus olhos só enxergavam a avenida. Não sei por quanto tempo fiquei assim, mas quando me virei para o lado oposto, o homem mexia na rosa. Ele havia aberto o zipper e enfiado as folhas, de modo que só o amarelo aparecia. Olhei e sem graça disse “to com medo que ela morra”. Ele só sorriu, apenas. Logo, algumas pessoas desceram. Agradeci, peguei na alça e me afastei, queria sentar. O lugar era estratégico, na fileira ao lado, três bancos atrás. Podia observá-lo. Fitei seus cabelos quase cacheados e orelhas de abano. Uma blusa cinza com detalhes azuis mostravam como seus braços eram finos. Nos primeiros instantes, desejei entregá-la a ele. Parecia que gostava. Pensei em travar uma conversa, parecia sozinho. Por pouco tempo... Abri minha bolsa a procura de alguma coisa errada, ele tinha mexido? Uma bomba? Sei lá! Nada. Fechei. Abri de novo. Carteira, celular, desodorante...Tudo aqui. Mas será que não tem nada de errado, mesmo? Remexi. Os fones quebrados no fundo, o Clube Social, nada de diferente. Ok! Descemos. Perdi ele de vista. Caminhei mais alguns metros até, por sorte, conseguir pegar o último ônibus parado. Esqueci a história da rosa, depois de olhar tudo novamente. Fui para casa pensando em alguns trabalhos voluntários. A frase me inspirou. “Antes de mudar o mundo, mude seu interior”. Se o Dalai Lama me conhecesse, ele diria “Para que andar com rosas, se não está preparada para encontrar jardineiros ?”. Em tempos conturbados, é difícil acreditar na bondade verdadeira.
Por Natália Oliveira

segunda-feira, 23 de março de 2009

Dá para respirar?

Um daqueles dias que você senta às 09h00 e levanta às 18h00 com a sensação que o dia passou rápido demais. Eu tinha muita coisa para fazer, por isso foi assim. Como diz um estagiário daqui, “quando a gente tá cozinhando o galo demora para passar, mas quando a gente pega no batente de verdade, passa rapidinho.” É, eu tive que concordar. Eu fiz um monte de coisas em tempo recorde, mas ainda ficaram dezenas para trás. Deixa para lá. Enquanto colocava as revistas no lugar, lembrava das tarefas que tomariam meu tempo no dia seguinte. Todas chatas e sem vida. Também, pudera. Quando a gente experimenta a cachoeira, nunca mais se contenta com a piscininha de plástico na casa da vovó. Desliguei o computador, dei uma última olhada na mesa, já arrumada, e lancei um “xau”. Atravessei o corredor longo, desci as escadas correndo, bati o cartão e com uma sensação estranha, costumeira e indescritível passei pelo portão branco. A rua, como de costume, estava movimentada, igual ao dia anterior. Trabalhadores apressados, senhoras desfrutando o ócio e comércios aos seus postos. Antes de chegar ao ponto, conferi o tiozinho da cana de açúcar, o menino do pastel, a garota do milho e tio do “tudo que você imaginar à venda”. Tudo igual, na mesma calçada. Cheguei ao ponto de ônibus e ao olhar pro céu quase escuro deixei escapar um sorriso. Lembrei daquele momento. Minha chefe havia pedido, então eu fui e conversei com ela, que me trouxe o Mateus. Ele sentou ao meu lado com o rosto moreno e infantil mais lindo que vi naquele dia. Ele com todos os seus 9 anos me esperava e de alguma forma eu senti que o esperava, também. Perguntei algumas coisas, de forma fácil, sobre inclusão digital. Ele respondeu. Tinha participado das aulas de informática. Perguntei outras, fugindo do assunto. "Tava fazendo o que? Tava legal?" Minha chefe me esperava para fechar o relatório, mas quem se importa? Passaram-se alguns minutos até que a gente chegou à última pergunta. “Você acha importante saber usar um computador?”, perguntei. E ele, levando uma das mãos cheias de cicatrizes pequeninas ao rosto, respondeu: "Ah, tia. Eu acho importante pq. ele é tipo um cérebro humano, pq. a gente encontra tudo que a gente quiser. Tira dúvidas. Por exemplo, se a gente ficar na dúvida se alguém matou o Papa e você quer saber se mataram ele ou ele morreu de 'parto' mesmo ai a gente entra na internet e já sabe." Ele falou assim, rapidinho, quase sem respirar. E eu fui para casa pensando, o que eu faço assim, rapidinho, sem respirar. Você senta às 09h00 e levanta às 18h00 com a sensação que o dia passou rápido demais. Muita coisa para fazer. Faz um monte de coisas em tempo recorde, mas ainda ficam dezenas para trás. Enquanto coloca as revistas no lugar, lembra das tarefas que tomarão seu tempo no dia seguinte...Nem dá respirar. Nem dá para imaginar. Nem dá...
Por Natália Oliveira

quinta-feira, 19 de março de 2009

Num mundo de estrangeiros

Eu não lembro que horas eram, sei apenas que era noite. Um dia de semana à noite, que poderia ser qualquer dia de 24 horas cansadas, eu tinha trabalhado. Peguei o ônibus no ponto de costume, andei alguns metros até a universidade, sem perceber que o tempo estava fresco e as ruas movimentadas. A única coisa que mudava aquele dia de todos os outros eram alguns sonhos que nasceriam mais tarde. Mais eu ainda não sabia disso. Passei no banheiro antes de subir à sala, lavei o rosto, sequei as mãos e deixei mais um espaço no espelho largo, disputado pelos decotes, cabelos coloridos e lápis de olho. No caminho não encontrei ninguém conhecido. Sem “olás” , sem abraços. Estava ansiosa e a ausência de amigos, naquele momento, não fazia a menor diferença. Depois de alguns passos lá estava eu, junto aos outros tantos alunos ainda não desistentes. Eu estava adiantada, não no horário, mas na entrega do trabalho. Não demorei a chamá-lo, meu coração pulava. Foram poucas palavras até que seus olhos pregassem nas folhas. O silêncio me deixava feliz e ao mesmo tempo inquieta. Ele prestava atenção, eu tentava decifrá-lo. Sem êxito. Passaram-se alguns dias, até que o momento que eu tanto esperava chegou. Eu precisava saber o que ele tinha achado do meu texto. Minha primeira tentativa de colocar tudo que eu encontrava e me segurava no curso estava por um fio, eu quase já não tinha mais vontade, não achava espaço e nem olhos dispostos, essa era a minha ultima opção. Por nomes, sem ordem, ele começou. Chegou a minha vez. Levantei da cadeira e a passos lentos cheguei à sua mesa. Antes de cumprimentá-lo olhei para o vermelho que fazia um traço e uma volta no papel, digitado e inteligível para tantos outros ouvintes. Eu nem sei ao certo o que eu pensei na hora, mas tive certeza quando o ouvi dizer. “Você tirou nove.” A partir daí eu sei que por mais que eu não possa, eu ainda posso. Por mais que tudo esteja andando de ré, ou de costas, eu sei que eu guardo um nove dentro de mim, que exige o meu melhor e que me garante que eu superei o oito, pelo menos por um instante. E isso representa um novo jeito de encarar a vida, um novo jeito de encarar o que sei e o que aprenderei. Ainda consciente de que muitos cincos e seis virão, me sinto plenamente satisfeita só por saber que, no meu mundo, meus textos são para pessoas batalhadoras e admiráveis como você. Talvez você não saiba o quanto foi importante, motivador e gratificante, mas eu sei o quanto para mim foi essencial e decisivo encontrar alguém que falava a minha língua num mundo de estrangeiros. Obrigada! PS: Uma homenagem ao meu educador Carlos Dias. Por Natália Oliveira

quinta-feira, 12 de março de 2009

Nada demais

Parei tudo. De vez em quando eu gosto de fazer isso. Deixo todos os “precisos”, “os urgentes”, “os pendentes” pela metade e venho escrever. Normalmente sinto isso, em momentos como esse. Luz de sol e vento fresco. Tempo que mesmo sendo cedo, me lembra fim da tarde. Que mesmo com 22, sinto saudade. Pés descalços. Colo de mãe. Trabalho no 2º andar de um prédio grande. A sala que concentra as principais áreas da organização é tomada por janelas. Não aquelas pequenas, estreitas, mas as bem largas. É um espaço com paredes brancas e azuis, do lado esquerdo as duas cores, do lado direito só a neutra. O colorido vem das árvores e de seus passarinhos. Minha mesa, por muita sorte, fica ao lado dos vidros. De vez em quando, como agora, me perco a olhar o céu e as nuvens. Hoje está bem claro, mesclado de azul e branco, como as paredes daqui. A diferença é que as paredes são de concreto e o céu de algodão doce, já experimentou? É uma delícia! O gosto é de melado. Já comeu melado? Eu também não, mas diziam quer era bem gostoso. Aqui trabalha muita gente diferente. Amigos de tempos, colegas há anos. Mas desconfio que ninguém se conhece. Conhece de verdade, sabe? Tem uma dupla que senta perto de mim. Elas param o trabalho e não escrevem, mas contam histórias e dão risada adoidado. Até os olhos encherem de água. “Ai, minha filha tava tão mal ontem. Febre, dor de garg” “Ai, meu filho ficou assim semana passada. Pensei que era deng...” “Ai, mulher, para de falar besteir” “É verdade, até pensei, que fosse malári” “Oxi, malar” “Lógico, também se fosse, eu ia buscar a Globo para registrar, doença pré-históric”. É assim o tempo todo. Uma corta a outra. Ninguém ouve ninguém. Como conhecer? Saber?Ouvir as mágoas, as angustias... O banheiro, que fica trancado, está perto da sala. “Anda sujo demais”, justificou alguém. “as crianças estão usando, não é possível”. As crianças, que são atendidas aqui, tem entre 2 a 11 anos e dois banheiro ao lado da classe que fica no andar de baixo e são usados na companhia de educadores. Não pensaram nisso. Agora a chave fica no mural. São três murais na parede azul e branca, a chave fica pendurada no primeiro deles. No início as pessoas ficavam olhando de rabo-de-olho a situação. Um tanto constrangedora. Algumas pensavam “vamo vê quanto tempo ele leva para devolver”. “Deve tá fazendo número 2”. “Etâ, baixou quantos quilos?” Não perdoam... Um dia desses fui escovar os dentes. Enquanto enxaguava a boca, um outro alguém entrou. “Nossa, que nojo” “O que?” “O pessoal vem no banheiro e deixa o papel todo a mostra” “Eca!” “Trancaram o banheiro e continua tudo a mesma coisa” “É...dizem que são as crianças” “Desde quando crianças menstruam”. É mesmo, desde quando? Parei tudo, mas agora preciso voltar. Eu gosto desse papo, dessa conversa...E você faz isso? Desde quando? Por Natália Oliveira

terça-feira, 3 de março de 2009

Em sua companhia

Cheguei atrasada na faculdade, corri para sala, que estava vazia. Na lousa um recado, segui as instruções. Sai e abri a porta ao lado. Lá estava o professor, os slides e os alunos atentos. Mostrei que cheguei com um beijo estalado na bochecha delas, em seguida veio a bronca. “Gente, por favor deixa o beijo para depois. Atrapalha a aula. Chega atrasada e ainda quer cumprimentar? Faz isso na hora do intervalo.” Levantei a mão, mostrando o palmo a ele. Não disse nada, agi da mesma forma que agimos quando recusamos uma macarronada, depois do almoço. Simplesmente levantei a mão. Sentei e larguei minha bolsa no chão, ao passo em que observava o espaço novo, bem diferente do costumeiro. Cadeiras e mesas novas, tela de projeção moderna e paredes brancas. Ele falava com gestos, o tema era interessante: Guerra Fria. Paralelos com meios de comunicação, história, dados. Interessante. Mas eu não estava interessada, não naquele momento, o que me surpreendeu. Seu método de ensino é um dos melhores. Parecia que minha calça estava infestada de pulgas, não conseguia me aquietar. Estava calor. Não estava a fim. Meus olhos permaneciam nos slides por poucos segundos, custei a prestar atenção nas novidades, que em outro momento me encantaria. Me distraia e me encontrava olhando os mosquitos, pequeninos, que voavam de um lado para o outro e fazia a menina ao lado balançar os braços no ar. “Tá vendo espíritos? Bebeu? Não é cerveja? Ou é?”, ele pergunto em meio a sorrisos. Não, eram os bichinhos. Não sei o que fiz nos minutos que correram entre esse momento e o pouso de um deles na mesa azul marinho. Era do tamanho de um grão de arroz, pequenino, mesmo. Tinha asas e antenas do tamanho de seu corpo. Andava de um lado a outro. Passei a observá-lo. Parecia perdido. Peguei o lápis que usava em outrora e passei a girá-lo, fazendo com que o mosquitinho girasse, também. Por um momento quis adestrá-lo. Por hora parei e coloquei o pedaço de madeira apontado ao lado do meu companheiro, que subiu. Ele caminhava pela “trilha” suspensa. A cada passo, meus dedos giravam, não queria perdê-lo de vista. Cansei e coloquei-o em minha caderneta, improvisada de caderno. Como se estive se acostumando ao novo ambiente, ficou parado. Por um momento pensei que pudesse ajudá-lo, coloquei a ponta grafite próxima a ele e risquei um traço torto. Queria fazê-lo andar por ali. Não andou. Riscava o final do traço para que ele visse. Ele não enxergava. Continuava parado. Ao vê-lo ali, me deu uma vontade imensa de sorrir. Estava feliz em tê-lo, em saber que tinha asas, que poderia voar, foi assim que chegou a mim, mas não fazia. Senti na boca o gosto da minha infância, forte e tão presente, que esqueci, momentaneamente da do meu desejo de ser adulto. Aquele papo de jornalismo, história, guerra já não fazia o menor sentido. Gostoso mesmo era aquela sensação de paz, que aquele bichano me trouxe. Nada daquilo chegaria perto da felicidade daquele encontro. Já sentia a mesma onda de coisas boas, que me invadia, quando perto da quadra do ginásio, cuidava das formigas, amigas. Eu e minha criança adormecida, que de tão empolgante e feliz, trago às escondidas. Momentos que são raros e tão divinos, que só podem ser explicados pela mesma teoria que justifica a existência de animais como aqueles. Eu em sua companhia! Por Natália Oliveira