Desço do ônibus antes do ponto. Bem antes. Faço de propósito, motivada por um impulso quase irracional. As calçadas me parecem confortáveis e eu ando devagar sobre elas. Diferente de todos os outros dias, deixo o meu olhar se perder à vontade, hoje nada passará rápido demais. Sei que não perderei o ponto. Eu posso ver. Sigo a trilha da minha volta e percebo que muita coisa mudou e eu nem percebi, mesmo fazendo o mesmo caminho todos os dias. Não sabia da agência de turismo na esquina e nem da loja infantil que virou teen. Comida japonesa no bairro? Novidade para mim. Empresa de comunicação? Nossa! Preciso andar mais por aqui.
As pessoas passam com pressa e, distraída, eu tropeço nelas. Os noticiários cheios de guerra e de homens disfarçados de bem aproveitam a deixa e me invadem. Por um momento perco o vento de vista e sinto medo. Apresso o passo, seguro a bolsa contra o peito e lamento a ideia de ir a pé para casa. Olho pro céu na tentativa de segurar o tom claro, mas o que consigo é perceber que Ele não vive em meio às prisões. Volto a enxergar.
Chego em casa – depois de anos – com as costas molhadas. Andei. Largo a bolsa na mesa da sala sem vontade de trancar a porta, sem medo de que alguém invada minha casa, sem medo de nada. Sem fantasias, sem medo de vida. Sem medo. Sinto a euforia e a ausência de qualquer precaução. O mesmo que sentia quando era criança, quando dispensava óculos e ainda assim enxergava.
Sinto as pernas relaxadas e uma vontade imensa de gritar pro mundo que estou viva. Sinto a lógica de segunda a sexta-feira quebrar a expectativa de um final de semana numa deliciosa terça-feira. Não espero o feriado chegar logo. O momento me basta. Não preciso de colírios de seriado e nem de lentes de telefone. Tô viva, enxergo. Isso me basta.
E descarto os conselhos. “Tome cuidado, minha filha”. Cuidado para que? Eu já tomei muito e muito sem precisar. Eu não tomo mais sem indicação, eu não tomo mais para prevenção. Agora eu sou a contra-indicação, eu quero enxergar. Eu quero enxergar a vida por perto estar. Eu não quero que nada separe o mundo de mim. Eu só lembarei. "O que os olhos não veem, o coração não sente". Está decido. Eu quero sentir. Não posso mais ser presa de mim.
Por Natália Oliveira
12 comentários:
Como vc disse "O que os olhos não veem, o coração não sente".
E muitas vezes quem é cego (por ser assim a dizer), encherga mais do que muita gentee..
Besos.
Nossa! Que valentia boa, que santa rebeldia... É isso mesmo. Pra que sentir medo de tudo que está a seu redor!!! O olhar para o alto, nos ajuda, ensina e acalenta.
Amei!Vou procurar "oxigenar" meu cérebro também.
Bjus.
Rô
Vivis!
Que bom vê-la.
É verdade.
O pior cego é aquele que não quer ver, né?
-
Que caiam as vendas, né Rô?
O bom é viver!
Quando for oxigenar o seu, me chama! Eu topo.
rs
-
Obrigada pela visita, meninas!
Beiiijos
Quando a gente nasceu, tinha um papel pra gente assinar dizendo "esse mundo é contra-indicado". Mas a gente não via, e depois, por teimosia, ficamos aqui, apesar do medo, das guerras, das preucações, das sanções, das tentações e dos pecados!
Aí, de repente, surge a vontade de auto alforria que de uma maneira muito das esquisitas, nos une ao mundo que reolvemos habitar contra a indicação e sem um manual explicativo sequer.
Está tudo aí, para quem quiser ver...
Com lente de aumento ou com velocidade diminuida. Você pode demorar um pouco pra chegar na sua casa, mas a distância era a mesma...
Ou não!
Eu quase pude sentir a euforia.
Vc faz das palavras melodia e da rotina poesia.
Nos fechamos em nosso casulo, fingimos ver o mundo que nos cerca, mas enxergamos apenas o que nos dizem.
Onde tá o mundo? O mundo real quero dizer. Claro que não é cor de rosa, mas as coisas vão muito além do que é dito, tanto para o lado bom quanto, infelizmente, para o ruim.
Vc tem o dom das palavras!
descer antes do ponto,isso é que falta para as pessoas
"Tô viva, enxergo. Isso me basta"
belas palavras :)
Querida!!!
Parabéns!
nem sei o que dizer,,,,fiquei confusa e muda aqui....
Adorei o texto!
bjo
Mi!
Qualquer dia a gente senta num barzinho, com vista para as montanhas, e toma um café ao som de um bate-papo sobre este mundo contra- indicado.
-
Verdade, Lá!
Nesta busca incessante pela verdade estou com você!
-
Rafa,
a gente se encontra no próximo ponto certo? Dá para andar alguns quilômetros a pé.
-
Diversidade!
Eu também fico diante deste mundo maluco. Mas afinal, o que é loucura?
-
Queridos, obrigada pela visita!
Adoro tê-los comigo!
Beiiijos
O pior de tudo é ver sem enxergar. As coisas estão tão automáticas que esquecemos que o mundo continua girando e que ele está além do nosso computador.
Que belas palavras, Naty.
Mais uma vez me acrescentaste muito.
Verdade, pequena!
Ele está além do nosso computador, da nossa casa, dos lugares comuns da nossa vida.
Um dia eu chego lá, rs.
Obrigada pela doce presença,
Beijos
Hua, kkk, ha, ha, passei algo parecido estes dias atrás na minha cidade, apesar de não ter gostado do que eu vi...
Mas ao pouco a vida acaba indo para o seu eterno fluxo, o futuro se torna o presente, que por usa vez, se torna passado...
fique com Deus, menina Natália.
Um abraço.
Fiquei curiosíssima!
O que viu?
É, a vida é um eterno fluxo. Mas eu não me contento mais em ser expectadora, dele Dani.
Beijos
Postar um comentário