domingo, 21 de novembro de 2010

Um Batom

O relógio marcava mais de quatro horas quando cheguei. Ele? Já estava lá. Vestia calça jeans azul, camisa, blusa de lã e sapato social. A pele bronzeada cobria toda a altura mediana e os cabelos cacheados em preto estavam “no lugar”. Com as mãos grossas segurava uma sacola.
Os ônibus passavam rápido pela avenida, mas quando paravam, o homem caminhava até eles e tocava com a ponta dos dedos a pintura branca do carro. O mesmo ritual dezenas de vezes, até que o movimento cessou. Ele então sentou ao meu lado, jogou o tronco para frente e um braço para trás. Do gramado pegou um pedaço de plástico preto, recentemente deixado acredito. Mexeu em um dos lados, fazendo com que uma ponta rosa escura aparecesse. Um batom.
Olhou fixamente para o objeto que segurava e em seguida encostou várias vezes a maquiagem nos lábios que, por sua vez, ficaram cheios de bolinhas coloridas. Satisfeito, ele, então, lambuzou os dedos e passou o rosa pelos cabelos, penteando os fios com as mãos. O contraste da cor feminina com os traços extremamente masculinos fazia graça, mas algo de ternura transbordava dele, eu não ri.
Meu ônibus chegou e, antes de partir, pude ver ele inclinando e chacoalhando o batom para baixo, em seguida levou as mãos ao pescoço e, com mais rosa, enfiou-as embaixo do braço...
"Loucura e inocência são tão parecidas, que a diferença, embora essencial, mal se percebe." (William Cowper)
Ao senhor.
Por Natália Oliveira

5 comentários:

Alvaro Vianna disse...

Esse peguei saído do forno. A cronista social - no melhor sentido - de volta.

bj

sblogonoff café disse...

Parece um daqueles personagens loucos do Guimarães Rosa...

Saudades de você, moça!!

Pensamento aqui é Documento disse...

Cuidado para não queimar as mãos, Álvaro!! =P.

-

Nunca li nada de Guimarães, me indica algum?

Saudadocê, tmb.

Daniel Savio disse...

E que somos nós para julgar a loucura dos outros?

Fique com Deus, menina Natália Oliveira.
Um abraço.

Pensamento aqui é Documento disse...

"Os loucos são certos, numa sociedade errada" , alguém diria...

Beijos