sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sapato Apertado

Às vezes angustia. É como precisar calçar um sapato que não lhe cabe mais. Sentir o couro lhe estourar bolhas, rasgar a pele, manchar a meia de sangue e ainda assim persistir, continuar caminhar. É como sentir que tudo se resume ao apertado, ao pequeno, ao impróprio demais. É como se de repente o sol de dentro saísse rua afora e se escondesse em algum lugar jamais conhecido.
Às vezes angustia. Na imensidão do mundo, ainda me falta espaço. Conhecimento tem hora que prende asas, sufoca. Há momentos que, mesmo diante de tanto chão, muros de notícias me coagem, me espremem, me aprisionam. Assustam! Então, tudo que desejo é lavar a alma. E a água vem. De enxurrada, de várias fontes-faces. É um cenário dolorido, é como ver o coração partido, ver o amor jorrar. Sofrido.
O silêncio cala a alma contrita. Coisas profundas dificilmente alcançam à superfície.
Subi no ônibus e logo mergulhei na primavera de Clarissa. Pétalas amarelas, azuis. Um piano de fundo, uma música sem coesão a tocar, o avião a cortar o céu. Uma conversa infantil, doce, insistente. Fechei o livro. A voz suave continuava a falar, olhei para o lado. Parecia uma pintura. Olhos redondos, negros e vivos, num rosto marrom forte. Perguntava coisas do mundo à mãe. Não tinha mais do que quatro anos.
Voltei a ler, ele a falar. Espichei o pescoço, desviando da mulher recém-chegada, lá estava ele grudado na janela. Voltei à Clarissa. Minutos depois percebi que minha cabeça não estava mais ali, guardei a companhia da menina dentro da bolsa. Ele olhava atento cada gesto meu. Sorrimos. Os dentes pequeninos e alinhados brincavam com um chiclete e ao mesmo tempo afastavam as bochechas num alargar de lábios. O retrato era, certamente, uma poesia. Meu coração acalmou.
Coisas profundas dificilmente alcançam à superfície, mas há quem encontre o sol em terrenos inférteis e oferte aos carentes de alegria.
Conhecimento tem hora que prende asas, mas agora eu posso buscar a ]ausência dele em sua poesia.
Por Natália Oliveira

4 comentários:

Daniel Savio disse...

Adoro clima de chuva, tudo fica mais tranquilo, mais simples...

Mas neste caso, só é um sapato apertado porque o coração que cabe nele vive a crescer...

Fique com Deus, menina Natálai Oliveira.
Um abraço.

Rose Cianci disse...

"Na imensidão do mundo, ainda me falta espaço. Conhecimento tem hora que prende asas, sufoca. Há momentos que, mesmo diante de tanto chão, muros de notícias me coagem, me espremem, me aprisionam...". Mas é um alívio tão grande "trocar os sapatos", não é? E você consegue fazer isso como ninguem.
Grande bj.

Laurinha disse...

Desligada do mundo virtual, quase me esqueci desse dom que vc tem. Transforma em poesia as rotineiras passagens dos dias.
Meus pé chegaram a doer com os sapatos, mas o coração se acalmo com o sorriso.
É gata, é fato, vc tem talento!
Parabéns!

Beijão

Pensamento aqui é Documento disse...

Dani!

O duro é quando a água vem de fontes-faces, né? Triste. E sem dúvidas, o coração não para de crescer.

-

Rô!

Enquanto não dá para trocar os sapatos, a gente tenta imaginar como serão os eternamente novos.

-

É Lá.

O sorriso servem de pantufas. Acalmam, aquecem.

-

Beiiijos