segunda-feira, 31 de maio de 2010
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Sapato Apertado
Às vezes angustia. É como precisar calçar um sapato que não lhe cabe mais. Sentir o couro lhe estourar bolhas, rasgar a pele, manchar a meia de sangue e ainda assim persistir, continuar caminhar. É como sentir que tudo se resume ao apertado, ao pequeno, ao impróprio demais. É como se de repente o sol de dentro saísse rua afora e se escondesse em algum lugar jamais conhecido.
Às vezes angustia. Na imensidão do mundo, ainda me falta espaço. Conhecimento tem hora que prende asas, sufoca. Há momentos que, mesmo diante de tanto chão, muros de notícias me coagem, me espremem, me aprisionam. Assustam! Então, tudo que desejo é lavar a alma. E a água vem. De enxurrada, de várias fontes-faces. É um cenário dolorido, é como ver o coração partido, ver o amor jorrar. Sofrido.
O silêncio cala a alma contrita. Coisas profundas dificilmente alcançam à superfície.
Subi no ônibus e logo mergulhei na primavera de Clarissa. Pétalas amarelas, azuis. Um piano de fundo, uma música sem coesão a tocar, o avião a cortar o céu. Uma conversa infantil, doce, insistente. Fechei o livro. A voz suave continuava a falar, olhei para o lado. Parecia uma pintura. Olhos redondos, negros e vivos, num rosto marrom forte. Perguntava coisas do mundo à mãe. Não tinha mais do que quatro anos.
Voltei a ler, ele a falar. Espichei o pescoço, desviando da mulher recém-chegada, lá estava ele grudado na janela. Voltei à Clarissa. Minutos depois percebi que minha cabeça não estava mais ali, guardei a companhia da menina dentro da bolsa. Ele olhava atento cada gesto meu. Sorrimos. Os dentes pequeninos e alinhados brincavam com um chiclete e ao mesmo tempo afastavam as bochechas num alargar de lábios. O retrato era, certamente, uma poesia. Meu coração acalmou.
Coisas profundas dificilmente alcançam à superfície, mas há quem encontre o sol em terrenos inférteis e oferte aos carentes de alegria.
Conhecimento tem hora que prende asas, mas agora eu posso buscar a ]ausência dele em sua poesia.
Por Natália Oliveira
segunda-feira, 24 de maio de 2010
Ao contrário de
Eu subia já descalça, com as sapatilhas nas mãos. A calçada do condomínio massageava os meus pés cansados, enquanto a tarde caia de um jeito bonito. O tempo estava fresco, confortável, o céu azul, sem nuvens. Da viagem do ônibus até cruzar o portão, já fazia planos: chegar em casa, deixar a cabeça em silêncio e desfrutar da minha companhia. Delícia! Enfim, sexta- feira.
Já perto do meu prédio, ela me encontrou. Óculos redondos, bolsa pequena nos ombros, cabelos acinzentados e histórias da neta para contar. Éramos vizinhas, há algum tempo, e sempre que podia, fugia dela. Justificável ou não, a maioria fazia. Atrasos, trabalho, compromissos inadiáveis, urgentes nada a convencia parar de falar. Ela sempre dava um jeito de segurar seu braço, a porta do carro, a conversa. Era desesperador, às vezes.
Quando a encontrava no elevador, esperava que escolhesse uma das portarias e fazia o mesmo, escolhendo a contrária. Para não agir com falta de educação, preferia evitá-la. Eu tinha horários e tudo que ela tinha a dizer não cabia em menos de 40 minutos. Eram discursos sobre a família de cientistas, sobre a nova síndica, sobre a vida em São Paulo, sobre mercado de trabalho. Não tinha Jeito.
A última vez que nos vimos foi neste sábado, quando eu saia para trabalhar. Descia os degraus do prédio em direção à garagem, quando ela me encontrou. Antes que eu pudesse continuar, ela me segurou pelo braço me envolvendo num abraço forte, fraternal. Sem afrouxar os braços, disse que ia se mudar e deixava comigo “toda sorte do mundo”. Ao contrário de todas as outras vezes, foram estas as únicas palavras que disse. Ao contrário das outras vezes, eu queria que tivesse falado, que tivesse me feito ficar.
Um aperto no peito, deu saudade.
Por Natália Oliveira
sexta-feira, 14 de maio de 2010
As Ruas Falam
"Às vezes, em nossa profissão, você não precisa fazer perguntas. Basta ir às ruas e olhar as pessoas. E ai que você descobre a vida como ela é realmente vivida"
Por Gay Talease
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Medo de Escuro
E de repente, percebi que perdi o medo do escuro. De repente andei na rua, sozinha, sem companhia alguma. De repente esqueci que tinha medo dos boatos de assalto e me vi no ônibus mais de 11. De repente senti que tinha uma lanterna dentro de mim, algo pequeno impresso em minha alma mas que, contradizendo o tamanho, iluminava a coragem escondida por tanto tempo.
De repente descobri que podia ser sozinha na vez da lua e poderia encontrar o verdadeiro significado de estar viva, sendo livre. De repente descobri que apesar do medo, era melhor estar solto do que preso e que nem havia tanto medo, mais. Podia acelerar o passo, mas prefiri contar com a ideia de que trabalho não tem cara nem lugar, a maldade também não. Eles podem ser convenientes em qualquer hora e numa delas posso estar, na hora do sol ou das estrelas.
Por isto não cabe tantas fugas assim. Fugir é escapar da vida e, mesmo que não seja esta minha morada eterna, não quero construir muros entre eu e o mundo.
Sei que de tudo, a sua luz eternizou a mais bonita forma de viver em mim e hoje eu posso voltar a ver a lua de perto, da rua.
Ao meu eterno sol,
Por Natália Oliveira
domingo, 9 de maio de 2010
À minha
Ela tem uma beleza frágil que exige cuidado ao olhar. Como uma pedra preciosa, é delicada ao lado de cicatrizes que ajudaram a lapidar o brilho da essência mágica que traz no peito de poucos seios. Os braços são finos, mas suportam sacolas pesadas, filhos pequenos e ônibus lotados.
Os cabelos finos carregam a imagem da primeira boneca, feita de espiga de milho, que ganhava vida em mãos pequenas e roliças. Corriam de um lado para o outro, pés descalços, sujos do jardim de barro da casa simples. Na infância, pais e mães separados, na vida adulta, a melhor referência de família que poderia entregar de graça presente.
É dona de uma olhar de super heróis, identifica qualquer dor camuflada, por mais escondida que esteja, e diante de qualquer segredo necessariamente confidencial, silencia.
E do significado que leva, é uma das mais bonitas personagens, mãe da forma mais bela. À minha em especial, mas deixo meu abraço a todas, por nos darem o privilégio da vida.
Por Natália Oliveira
sábado, 1 de maio de 2010
Enoque, Fernanda, Eu
Alcancei o primeiro lugar, unitário, do lado oposto à porta e ao cobrador. Estranhei a falta de gente, no horário de sempre. O espaço entre o pensamento e o gesto de abrir o livro foi interrompido pelo boné, a camisa gasta, aberta até o terceiro botão, de cima para baixo, e a barba no rosto. Antes de passar a catraca virou o rosto para o lado e disse algo à mulher que o esperava, atrás. Voltei às páginas.
O vi, de novo, quando deixou sua cadeira, no fundo, para conversar com o cobrador. Perguntava sobre algumas ruas e no final de uma das perguntas concluiu “onde fica a Band é que eu quero ir.” O homem moreno, preso pela caixa de dinheiro, disse que sabia onde era e que avisaria na hora certa. Ele voltou à companhia da mulher, eu baixei os olhos às linhas.
A alguns metros do ponto, dei sinal. Olhei para trás e vi que o homem olhava curioso tudo que passava velozmente pela janela. Olhei para o lado e vi que o cobrador continuava imerso em pensamentos. Olhei para frente e vi que era hora de descer. A minha e a deles. Ele me ouviu tirando o protetor de ouvido - laranja encardido - com uma das mãos. Respondeu em seguida, descemos juntos. Foi neste momento que olhei para ela.
Alaranjados, fios molhados, fios brancos, fios secos, juntos. Uma faixa de fundo branco levemente florida contornava o rosto, deixando o cabelo todo para trás. Não era liso nem enrolado, eram ressecados, um pouco rebeldes. Não lembro o que vestia, sei apenas que algo era azul. Lembro também do seu sorriso, faltavam alguns dentes, mas os que tinham, se ocupavam bem no espaço.
Caminhamos alguns metros em direção à Rádio e Televisão Bandeirantes – a Band, eu cumprir o trabalho, eles. E vocês?. INSS. Vou conversar na portaria, porque eles são jornalistas e devem saber me dizer o que eu tenho que fazer. Na televisão eles falam direitinho o meu problema, o Datena. O coração apertou. Moramos no Grajaú, há duas horas daqui, mas eu posso ficar até às seis da tarde para resolver o problema do meu dinheirinho. O coração apertou. Será que eu consigo? Antes que eu pudesse, a mulher de azul disse “consegue, Deus já mandou um anjo para gente”, sorriu para mim.
Andamos mais um pouco juntos, Fernando, Enoque e eu. Despedi, desejei boa sorte, sorri. Eles sorriram também, estavam confiantes. Antes de entrar na empresa, um último olhar, ele acolhia os ombros dela e dizia “minha assessora”.
Por Natália Oliveira
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