Vai ser assim até firmar os passos de novo. Acostumada com o solo seguro, é difícil imaginar como será o imprevisível. O que se sabe é que o caminho já não é o mesmo, os passos não ficarão marcados como antes e isso a faz pensar que não é capaz de andar. Sente um arrepio na espinha, trava o mapa, gruda os pés na linha de partida. Um novo chão a espera, longo, vivo, uniforme. Ela o recusa. Chuta. Suja os sapatos. A terra levanta grãos em forma de poeira e depois assenta no mesmo lugar. Pensa, então, voltar para o caminho já percorrido, onde o andar lhe é familiar, mas ao mesmo tempo, sabe que não é feita de retrocessos. No fundo, gosta do embate, porque são eles que a tiram dela mesma. Cospe o pensamento, nega-se. Observa os canteiros, olha bem os refúgios e alimenta a certeza de que se não der, pode correr escondida, camuflada para o topo de alguma árvore. Mas mesmo vendo que os galhos a suportariam, sabe que não é na fuga do embate que elimina os medos. É vivendo-os. Briga consigo por pensar tantas contradições, manda e obedece o pedido de calar a boca. E cala. Cala os pensamentos, mas o corpo continua a gritar. Suas pernas tremem, o coração empurra o peito pra frente e para trás, gotas de suor escorrem da testa e molham a camiseta. Sente a saliva sumir da boca. Náuseas lhe jogam o estomago para um lado e para o outro, a cabeça parece girar. Tentando equilíbrio lança um olhar aos canteiros, vê bem os refúgios, sabe que pode fugir. Mas não foge. Corre! Corre pelo chão incerto, tropeça, afunda os pés no desconhecido, corta os dedos com pequenas pedras que saltam em seu tênis, mas continua a correr. Até que sua força se esvai, permite-se cair então. Seu corpo toca o chão áspero, tudo lhe dói. Ajeita-se no desconforto como pode, traz as pernas ao encontro dos seios e chora. Lágrimas grossas vão ao encontro de seus lábios, que ficam salgados. As dores lhe parecem as mais agudas que já sentiu. Com ajuda dos braços arruma as pernas e levanta-se, como bonecos de elástico. Finca os pés no chão. Sente medo, muito medo, mas já sabe que não é a mesma. Leva as mãos ao rosto para conter o suor que lhe molha. As árvores já não lhe parecem tão seguras. Equilibra-se, pega suas forças pelos fios, sustenta a vontade nos olhos e corre certa de que se machucará de novo, mas já não é mais a mesma. Por Natália Oliveira
domingo, 31 de outubro de 2010
Até firmar os passos
sábado, 9 de outubro de 2010
A arte de cobrir os pés
As portas abriram e as pessoas desaguaram na rua. Depois de algumas mulheres, ele desceu com dificuldade as escadas. Andava se equilibrando num esforço visível de se manter em pé. Usava um terno azul marinho bem cortado, gravata em listras. As cores realçavam a pele mulata. Os cabelos eram pretos arrumados em gel. Acompanhei todos seus movimentos com um olhar despretensioso. Imaginei que estivesse com as pernas machucadas pelo tamanho esforço que fazia ao se locomover, mas a suposição perdeu logo o lugar para a certeza de outra cara. Seus pés estavam parcialmente encaixados nos sapatos, usava-os como se fossem tamancos, com os dedos enfiados até o fundo e o calcanhar de fora. Os pés estavam nus. Assim que desceu do ônibus, tentando não perder os calçados no meio do caminho, seguiu para o gramado próximo, que separava a calçada do estacionamento da loja de construção. Em meio ao verde, um quadrado de concreto um pouco mais alto do nível da grama destacava, ali ele sentou. Os joelhos flexionados apontavam para o céu, enquanto a calça deixava à mostra as canelas finas. Nas mãos ele segurava um bolo de pano cinza, que logo se desfez em meias de algodão. Ali mesmo, na calçada, ele vestiu o primeiro pé. A ponta do dedão apareceu num furo discreto. Não havia a menor demonstração de ansiedade em seus gestos, mesmo quando percebeu que eu o observava. Sustentei o olhar por alguns segundos e virei o rosto para rua. Ele, então, voltou à arte de cobrir os pés. Sem acelerar a calma, desamassou e calçou a meia que faltava, também furada. Então mergulhou os pés nos sapatos e se pôs em pé. Poucos minutos depois dei sinal ao segundo ônibus dos três que pegaria naquela manhã. Entrei, passei a catraca e olhei para aquele todo mundo com cara de sono, de trabalho e de trânsito. Sentei. Apesar do sol de primavera, o vento passava pela janela aberta e batia forte. A franja recém cortada dançava em meu rosto. Gostoso. Fechei os olhos e percebi que algo acontecia em mim. Som de riso. Ouvi. A ausência de elegância daquele homem brincava despenteada dentro de mim. "A arte alimenta-se de ingenuidades, de imaginações infantis que ultrapassam os limites do conhecimento; é ai que se encontra o seu reino. Toda a ciência do mundo não seria capaz de penetrá-lo."(Loinello Venturi) Ao artista de pés descalços. Por Natália Oliveira
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